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Peça para crianças estimula o orgulho de ser mulher

‘De Mãos Dadas com Minha Irmã’, do coletivo Os Crespos, relaciona a força das águas com a condição feminina e procura mostrar às novas gerações como é perversa a visão preconceituosa da mulher ligada à fofoca, à inveja e às intrigas

Por Dib Carneiro Neto

Fala-se muito sobre as intrigas entre as mulheres, as fofocas, as invejosas, mas pouco se fala de fraternidade, solidariedade e empatia entre as mulheres. Quem levanta essa séria questão, e numa peça de teatro para crianças, é a dramaturga e atriz Lucelia Sergio, do coletivo Os Crespos. No sábado, dia 10, o grupo inicia nova temporada de De Mãos Dadas com Minha Irmã. É um título lindo, convidativo, que nos abraça e nos chama para um assunto muito importante. Haverá sessões especiais no carnaval, o que é ótimo para quem não gosta da folia e quer usar os feriados para levar a família ao teatro. Será uma curta temporada no Sesc Belenzinho.

“De mãos dadas com minha irmã”  CRÉDITO_ Mariana Ser e Tally Campos_Divulgação

Um atrativo extra do espetáculo é ter a narração em off feita por ninguém menos do que a atriz Léa Garcia, veterana do cinema, teatro e televisão, falecida no ano passado. Foi uma escolha de peso, tendo em vista a temática e o fato de que Léa Garcia foi uma das primeiras mulheres negras com destaque nas artes cênicas no Brasil, abrindo caminhos para muitas outras irmãs. O espetáculo, criado coletivamente, mas com texto final de Lucelia Sergio, conta uma fábula inspirada na Orixá Obá, que dá nome à heroína da história, cuja missão é recuperar a memória e salvar seu povo de uma seca. Os Crespos é um coletivo teatral de pesquisa cênica e audiovisual, debates e intervenções públicas, composto por artistas negros e negras. Formou-se na Escola de Arte Dramática EAD/ECA/USP e está em atividade desde 2005. 

Na entrevista a seguir, Lucelia Sergio nos diz coisas fundamentais sobre a importância de mostrar às novas gerações outras formas de ver a mulher e valorizar a condição feminina. Não perca. São seis perguntas que desvendam a peça, seu tema e as linguagens escolhidas, além de nos revelar uma atriz e dramaturga muito articulada e brilhante.

“De mãos dadas com minha irmã”  CRÉDITO_ Mariana Ser e Tally Campos_Divulgação

1. Por que é importante falar de “irmandade feminina” para as crianças no teatro?

Lucelia Sergio – O jeito que a gente aprende sobre o que é ser mulher, de alguma forma, nos obriga a certa cumplicidade com o preconceito, então é necessário valorizar outras visões sobre a irmandade feminina, partilhando histórias que ajudem a mover as fronteiras que determinam o que é ser mulher. Fala-se muito sobre as intrigas entre as mulheres, as fofocas, as “invejosas”, mas pouco se fala sobre as filosofias de coletividade operadas pelas mulheres diariamente. Pouco se fala de fraternidade, solidariedade e empatia entre as mulheres e moças. Nessa peça enfrentamos o desafio de alimentar imaginários diferentes dos estereótipos repetidos diariamente com relação à mulher. Na cultura que estamos estudando, quem guarda as irmandades, as associações e a família é uma força feminina. Precisamos compreender desde cedo que estamos umas contra as outras e que podemos alimentar o desejo de sermos iguais, mesmo que esse mundo violento nos diga o contrário.

2. Explique um pouco sobre a relação que há na dramaturgia entre a seca e a condição da mulher.

Lucelia Sergio – Para a cultura iorubá, as mulheres são as águas, e vários de seus contos aqui no Brasil falam sobre esse poder gerador de vida que é a água, sobre sua capacidade de transformação, força, persistência e continuidade. A seca, portanto, é a ausência do poder feminino, a infertilidade, a estagnação e truculência. Na peça, as ancestrais de Obá coletivamente se recusam a aceitar as violências impostas contra elas e, por isso, resolvem secar suas águas. O mundo está seco, porque não há o respeito pela natureza das mulheres, porque não se iguala as mulheres em poder. A seca consome a memória de Obá, que vive em uma realidade dominada pelos “Discords”, uma Inteligência artificial de gangues armadas que odeiam as mulheres e agem de forma “diferente”. Então, a nossa heroína precisa de água para lutar contra o próprio desaparecimento, contra o massacre cultural, contra a imposição de um destino.

“De mãos dadas com minha irmã”  CRÉDITO_ Mariana Ser e Tally Campos_Divulgação

3. Por que esta peça é considerada um marco na trajetória da cia Os Crespos?

Lucelia Sergio – Agora, a Cia. Os Crespos completa 19 anos de pesquisa continuada. Ficamos sete anos sem estrear um novo espetáculo. Nesse período, nós debatemos muito o teatro que fazemos e pesquisamos, criamos, produzimos filmes e voltamos para a sala de ensaio com maturidade para transformar nossa potência em novos espetáculos. Neste trabalho estamos consolidando uma pesquisa de linguagem, após muitos anos de investigações cênicas com a utilização de vídeo. Dessa vez, conseguimos juntar uma equipe muito poderosa para um trabalho que experimenta diversos recursos tecnológicos e que constrói uma dramaturgia com frescor para esses novos tempos de discussão sobre a identidade negra. Acredito que é um trabalho ousado e que marca nossa volta aos palcos.

4. Quais foram os maiores desafios ao fazer o casamento do teatro (ao vivo) com o audiovisual?

Lucelia Sergio – O tempo de distribuição do trabalho para cada uma dessas áreas é muito diferente, foi um grande desafio administrar o tempo da produção dos desenhos e animações com o tempo de criação da cena, que nessa proposta se interdependiam… então o processo durou 5 anos. Também tivemos de descobrir como criar a ilusão de que eu estou dentro da história que acontece no vídeo, como produzir efeitos que mantenham o jogo interessante. Além disso, dentro da cena, o jogo de interação com o vídeo impõe uma marcação muito exata, e a equipe inteira tem de jogar junto para que as coisas aconteçam simultaneamente, mas essa é a parte gostosa do desafio. Por fim, há também a questão financeira, que nos exigiu grandes acrobacias para a realização do trabalho, pois essa fusão do teatro com o audiovisual impacta muito no orçamento.

“De mãos dadas com minha irmã”  CRÉDITO_ Mariana Ser e Tally Campos_Divulgação

5. Conte como a peça se aproxima de um game.

Lucelia Sergio – Em um jogo de RPG a personagem principal vive uma história épica, há um narrador, e as personagens vão vivendo situações e os desafios que vão aparecendo no jogo, a personagem vai ganhando artefatos, vai descobrindo mundos… na peça seguimos essa lógica. A nossa heroína vai mudando de fase em cenários virtuais, onde se relaciona com as outras personagens da história. Utilizamos a linguagem visual do game, loooping, vídeos-reativos, personagens 3D e efeitos com laser, além da trilha sonora, que é muito importante para provocar a sinestesia do jogo. Também nos inspiramos em games para construir as relações entre a Obá e as personagens virtuais, na tentativa de dialogar com essa referência tão presente para os jovens. Na história, Obá é uma guerreira destemida, representante de Eléékò, uma sociedade de mulheres caçadoras e sabe usar todas as armas que existem, portanto é uma mulher invencível. Apesar disso, Obá está perdida há muito tempo e precisa de ajuda para cumprir sua missão. A cada fase do seu desafio a heroína vai se conectar com relações de irmandade que trazem enigmas capazes de reconectar Obá à sua cultura africana, recuperar um elo perdido para abrir horizontes e zerar o jogo.

6. Quais as vantagens e os riscos que venceu ao decidir, na mesma peça, escrever, fazer o roteiro de vídeo, dirigir as visualidades e, ainda, interpretar?

Lucelia Sergio – N’Os crespos trabalhamos um processo colaborativo em que os atores estão envolvidos em diferentes áreas, participando colaborativamente da criação do espetáculo, então somos convidados a dominar conhecimentos de diversas áreas para a criação artística. São os atores que fazem as pesquisas, criam as cenas e as bases dos textos, levando muitas vezes a lógica do espetáculo para além das personagens, e só depois disso é que um dramaturgo ou dramaturga vai organizar esse trabalho. Estou acostumada com esse processo de criação. Assinar o texto foi um desafio, mas foi extremamente importante para o desenvolvimento da pesquisa que venho fazendo há muito tempo. Sinto que eu só consigo escrever porque estou imaginando a cena, as emoções da personagem e porque levei essa criação para a cena, experimentei, mastiguei. Tive de fazer o roteiro de vídeo e a direção das visualidades, o que foi cansativo também, mas acho que uma coisa potencializou a outra.

“De mãos dadas com minha irmã”  CRÉDITO_ Mariana Ser e Tally Campos_Divulgação

Serviço  

“De mãos dadas com minha irmã”  

Com a Cia Os Crespos  

Reestreia 10 de Fevereiro de 2024, às 12h no Sesc Belenzinho

Especial de carnaval: dias 10, 11, 12 e 13/02, às 12h

Temporada até 25 de fevereiro de 2024. 

Sábados, domingos e feriados, às 12h (meio-dia) 

Ingressos: R$ 10 (credencial plena), R$ 15 (meia entrada) e R$ 30 (inteira) 

Crianças até 12 anos não pagam. 

Duração: 80 min | Classificação Livre   

SESC BELENZINHO:  Rua Padre Adelino, 1.000.  Belenzinho – São Paulo

Telefone: (11) 2076-9700

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Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990 na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo, o Caderno 2, de 2003 a 2011. Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij (Centro Brasileiro de Teatro para Infância e Juventude). Por sua peça Salmo 91 , adaptação do livro Estação Carandiru, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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