William Costa Lima, dramaturgo e diretor de ‘Clara Cor de um Silêncio Azul’, fala sobre o valor da obra de Maria Clara Machado, homenageada na peça, e sobre a falta de mais arte e liberdade criativa na formação das crianças de hoje
Por Dib Carneiro Neto
O teatro para crianças tem vencido barreiras temáticas de forma corajosa e marcante. Felizmente. Mesmo que uma onda retrógrada e conservadora ainda sopre ventos ruins de vez em quando, o importante é existirem artistas que persistem, insistem, resistem. Morte, por exemplo, por décadas foi tema tabu nas peças do horário diurno.
Eis que o espetáculo Clara Cor de um Silêncio Azul, que inicia temporada gratuita neste fim de semana no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo, põe em cena uma criança em coma. Olha só que bela audácia! Não se sabe se o que ela vive ali é real, imaginação ou delírio do coma. E tudo isso com o pano de fundo de uma singela homenagem à dramaturga Maria Clara Machado (1921-2001) , a grande autora de Pluft, o Fantasminha, entre tantos outros clássicos do gênero teatral de censura livre.
O autor e diretor da peça é William Costa Lima, que está há 19 anos à frente do grupo paulistano Teatro do Torneado, concedeu uma longa entrevista ao Canal Teatro MF em que diz coisas lindas e muito pertinentes sobre a peça, sobre seu ofício, sobre fazer teatro para crianças. Sobre o fatídico fechamento dos teatros na pandemia, ele diz: “Estávamos criando um espetáculo sobre uma criança em coma e de repente foi o Teatro que ficou em coma.”
Para ele, a peça mantém duas coisas que ainda nos acompanham nos tempos de hoje: “a sempre iminente possibilidade de ficarmos sem vida a qualquer momento e a cruel possibilidade de uma vida ficar sem arte”. William nos brinda com ideias muito lúcidas sobre o que faz. Por exemplo: “É da união de nossas energias mais controversas que surgem nossas criações”.
E sobre a personagem em coma: “Foi a maneira simbólica que encontramos para falar sobre como nossa sociedade vem tratando suas crianças, deixando-as cada vez mais distantes de suas capacidades imaginativas. O lúdico está em uma espécie de coma. Tudo voltado para a criança parece ter agora uma intencionalidade ou um fim utilitário. E, junto com isso, vemos cada vez mais diminuírem-se os espaços para livre experimentação imaginativa em nossa sociedade.” Leia tudo isso e muito mais a seguir – e não deixe de prestigiar o espetáculo com sua família.
Esta peça foi uma cria da época triste do isolamento sanitário da pandemia. Comente como ela poderá ser vista hoje e por que é válido montá-la de novo.
William Costa Lima – Iniciamos o processo de criação desse espetáculo no final de 2019 e, em pouco tempo, fomos atropelados pela pandemia. Clara Cor de um Silêncio Azul estava começando a ser despertada em sua singularidade; em seus primeiros contornos; em seus discursos poéticos… Tivemos de lidar com a possibilidade de não fazermos mais Teatro. Como força coletiva, perdemos tudo o que havíamos construído materialmente. Fechamos o Sítio Cultural (nossa sede em Ribeirão Pires) e a nossa Escola Atemporal de Artes, um sonho que demorou décadas para se concretizar, e que, em tão pouco tempo de caminhada, se esfacelou. Eu enlouqueci com a possibilidade de não fazer teatro. Mas fiz de tudo para transparecer segurança para os outros artistas do grupo e da escola. Num momento em que a arte era impraticável, impossível, inviável… eu repetia nos nossos diversos e filosóficos encontros online: “Isso vai passar e teremos tirado uma grande lição desse tempo partido”. Quando voltamos à sala de ensaio, já não éramos mais as mesmas pessoas e seria impossível criar um espetáculo que não reverberasse o papel da arte diante da tão noticiada e banalizada presença da morte, que estava ainda mais acentuada no imaginário das nossas crianças. Estávamos criando um espetáculo sobre uma criança em coma e de repente foi o Teatro que ficou em coma. Os símbolos foram chegando até nós e nos ajudando a construir não um espetáculo criado na pandemia, mas um espetáculo que foi atravessado por um momento histórico que parecia soprar em nossos ouvidos: “Façam o teatro viver dentro de vocês.” Não há menção sobre a pandemia em nossa dramaturgia, mas há uma fábula que constrói duas coisas que ainda nos acompanham nos tempos de hoje: a iminente possibilidade de ficarmos sem vida a qualquer momento e a cruel possibilidade de uma vida ficar sem arte. Desde a estreia presencial em novembro de 2021 (em Ribeirão Pires), trazemos conosco apenas a vontade de soprar no coração das pessoas: “Façam o teatro viver dentro de vocês para sentirem a graça que é estarmos vivos.”
Qual a primeira peça de Maria Clara Machado que você viu encenada e como foi sua recepção a ela?
William Costa Lima – Não foi bem encenada, e sim encaixada em mim (risos). Eu fazia parte do grupo de Teatro Amador “Tudo Pra Nós”, na periferia do Itaim Paulista, e uma professora me chamou para que eu assistisse a uma pequena montagem com suas crianças para o texto de Maria Clara, O Rapto das Cebolinhas. Era teatro de fantoche, pedagógico, mas misturado com a espontaneidade das crianças ficou algo incrível. A professora ensaiou tudo de uma maneira tão precisa que fiquei encantado com os quiproquós daquele texto. E acho que fiquei principalmente seduzido pela ideia de que se eu fizesse teatro para as crianças daquela escola pública, elas assistiriam e eu teria público. Porque elas se mostraram muito dispostas a escutar uma história. Diferentemente dos adultos, para os quais tínhamos que praticamente “pregar a palavra do teatro” para que assistissem a algum dos nossos espetáculos amadores. Depois, a mesma professora me sugeriu ir até à biblioteca e dar uma lida nas outras peças de Maria Clara Machado. Eu li. Devorei! Me apaixonei de cara pelo universo da autora! Eu ficava cada vez mais impressionado quando entendia a época em que ela escreveu suas peças e o contexto histórico do Brasil e do Teatro Tablado. Depois, passei a ir muito mais ao teatro no centro de São Paulo e vi algumas montagens de peças dela. Passou a ser algo obrigatório para mim: se tinha peça da autora em cartaz, eu iria ver. Lembro de ter gostado de uma montagem da Cia Triptal, com direção de André Garolli, para o texto O Cavalinho Azul. Era bem coletiva e bonita!
E qual a peça dela de que você mais gosta e por quê?
William Costa Lima – Escolher só um texto de Maria Clara Machado, eu não vou conseguir. Vou escolher dois! Admiro a maneira como ela se utilizou dos recursos épicos e sociais na construção do texto de O Cavalinho Azul, e gosto muito da profundidade metafórica com que ela estabeleceu as relações entre as personagens de Pluft, o Fantasminha. Já deu para sacar que aqui tem alguém apaixonado por essa autora, né?
O que a dramaturgia de Maria Clara Machado representa hoje para você, na sua forma de encarar e fazer teatro para crianças? Que importância a obra dela ainda tem?
William Costa Lima – Maria Clara Machado influenciou não apenas meu modo de escrever e dirigir para crianças e jovens, mas também minha crença na ética de que podemos tornar o teatro realizável se aceitarmos com paciência os elementos que temos em mãos e ajudarmos cada artista a brilhar em sua potência mais singular. Assim como Maria Clara Machado com seu Teatro Tablado, eu participo diretamente da formação dos artistas que estão em cena nos projetos do Teatro de Torneado. Durante um tempo, isso foi muito confuso, hoje é bem menos. Ler e ouvir sobre como Maria Clara foi lidando com a ideia de que a dramaturga, a diretora e a pedagoga teatral ocupavam um mesmo corpo, me ajudou bastante. E precisamos ler e ouvir as histórias sobre como os grandes encenadores lidavam com suas energias controversas. Porque é da união de nossas energias mais controversas que surgem nossas criações, não tem como fugir disso. Um texto e uma direção para mim não são apenas uma vontade de realizar arte, mas sim de como consigo trazer vivacidade para o contexto humano que nos cerca, seja ele qual for. Maria Clara Machado ainda é um exemplo histórico de que o teatro infantil sempre foi um espaço que nos permite muita ousadia, contestação e experimentação. Basta refletir sobre o tempo histórico em que ela escreveu seus textos para entendermos essa ousadia e, quem sabe, aguçarmos nossa própria ousadia ao escrevermos e criarmos arte para a infância neste nosso complexo tempo presente.
A música parece ter uma papel muito importante no espetáculo, porque há créditos para você em músicas originais, para a direção musical de Gustavo Kurlat e para criação musical e arranjos do duo Com Cervantes. Muita gente boa fazendo a música. Comente sobre isso e sobre como a música está inserida no espetáculo.
William Costa Lima – No geral, são canções e trilhas pontuais que indicam de maneira sensível o quão a menina Clara está se aproximando ou se afastando da morte. Eu sou criador de letras e melodias, mas não sou músico. Sou um poeta/compositor para teatro que, conforme a empolgação do contexto da criação, cantarola umas músicas na cabeça e chama alguém para concretizar de maneira mais técnica suas ideias. Assim, minhas ideias já não são mais só minhas. Tudo o que crio no Torneado nos últimos anos vem com o olhar das minhas parceiras, principalmente da Maira Sera. Em Clara Cor de um Silêncio Azul, música e dramaturgia caminham de mãos dadas contando uma só fábula e construindo um mesmo ritual. Gustavo Kurlat é uma pessoa de teatro que me trouxe lá em 2006 (ele foi meu professor na Escola Livre, a ELT) a importância de criar portas na dramaturgia para que a música dê conta de levar os espectadores aos mais diversos estados e universos. Junto disso, ele pode contar com a competência de arranjar e sugerir outras melodias de Sandro Dorneles e Della Mancha. A cada voz que entra, uma nova sugestão, e Gustavo Kurlat é muito generoso em acolher as vozes e organizá-las.
O material de imprensa diz que se trata “de uma reflexão sobre o tema da morte na constituição do imaginário infantil”. Comente sobre a coragem de colocar em cena uma criança em coma e a importância da imaginação relacionada à qualidade de vida de uma criança.
William Costa Lima – A escolha de colocar uma criança em coma não foi fácil, mas foi a maneira simbólica que encontramos para falar sobre como nossa sociedade vem tratando suas crianças, deixando-as cada vez mais distantes de suas capacidades imaginativas. Como adultos, sabemos que imaginar é uma ferramenta que nos auxilia na criação de estratégias de sobrevivência e na busca pela tão almejada qualidade de vida. Colocar uma criança em coma, para nós, significa que a qualquer momento ela poderá despertar se o máximo de sua potência imaginativa não for ceifado. De certa maneira, o lúdico está em uma espécie de coma. Tudo voltado para a criança parece ter uma intencionalidade ou um fim utilitário. E, junto com isso, vemos cada vez mais diminuírem-se os espaços para livre experimentação imaginativa em nossa sociedade. Em Clara Cor de um Silêncio Azul, o coma da criança também faz uma interface com o coma em que as artes se encontram diante de governos autoritários que inspiram sociedades insensíveis. Há arte no mundo? Sim! Existem as melhores condições para que a arte exista? Não! Assim como a imaginação, a arte está colocada num lugar utilitário. E não podemos esquecer de que ainda há uma questão de sobrevivência econômica, que faz com que muitas pessoas não consigam ter a oportunidade de se expressar pela arte e através dela. Estamos vivos como crianças, como sociedade e como artistas? Sim. Mas resta saber se estamos vibrantes. Em 2024, estamos apagando as luzes de espaços culturais em vez de compreender o papel que eles podem exercer na contemporaneidade. Para nós, do Teatro de Torneado, tudo o que foi mencionado aqui tem uma relação intrínseca com o desenvolvimento humano: nossa sociedade vem ignorando o imaginário de nossas crianças, que um dia serão os adultos que decidirão entre acender ou apagar as luzes de um espaço cultural.
Criado desde 2005, o Teatro de Torneado faz mais do que simplesmente montar peças, o que já seria suficientemente importante. Mas vocês querem mais. Fale sobre as atuais lutas e conquistas do grupo.
William Costa Lima – Um sonho é retomar nossa Escola Atemporal de Artes com algum apoio institucional. É através dessa escola que fortalecemos nossa rede de artistas e contribuímos socialmente para um mundo que acolha cada vez mais as diversidades e singularidades das pessoas. Mas há outra paixão recente (ou não), que é o audiovisual. Em 2021, iniciei minha trajetória como roteirista e diretor, e foi impossível não deslocar o olhar das pessoas do grupo para as telas. Estamos prestes a estrear nosso terceiro curta-metragem (inspirado numa obra de Tennessee Williams), e com os outros curtas já passamos por festivais bacanas e conquistamos alguns prêmios interessantes.
E quais os próximos passos da companhia?
William Costa Lima – Existe um outro projeto em andamento, entre as linguagens do teatro e do audiovisual, que acredito ser um passo importante para nossas descobertas e para o nosso futuro. Quando eu tinha 18 anos, me apaixonei pela primeira vez por um garoto e escrevi uma comédia romântica chamada Fugindo de Fusca. Não sabia se era teatro ou cinema, mas era uma história que desejava contar e que empolgava quem estava ao meu lado. Tinha um beijo na boca entre mim e o garoto. Além de chocante para os anos de 2001, seria uma descoberta importante para mim. Na realidade, o beijo aconteceu; ardi em febre e, misteriosamente, o garoto não quis mais nada comigo. Apenas me encontrou para dizer que leu o Fugindo de Fusca e que histórias bonitas como aquela precisavam ser contadas em 2001. Três anos depois, o garoto adoeceu e morreu. E a história de Fugindo de Fusca não foi contada nem naquela época nem até agora. O tempo passou e criei uma consciência política e estrutural que me mostrou o quanto fatores econômicos impediram e impedem tantos “Wiliams” de existirem através da máxima potência das histórias que desejam contar. Hoje, esse projeto está sendo realizado entre trancos e barrancos. Com um pequeno edital, filmamos metade do longa, e aí o dinheiro acabou. A luta agora é conseguir filmar a outra metade. O projeto, que era para ser uma comédia jovem, está virando um drama/documentário metalinguístico sobre a dificuldade de jovens pobres periféricos terem em suas mãos o controle da narrativa: seja ela da ficção ou de suas próprias vidas. Era para ser uma coisa, mas não deu para ser. A gente sofre? Sofre! Mas logo entende que não haverá arte mais autêntica do que aquela que respeita nosso contexto e não nos objetifica como produtos de uma pauta capitalista cada vez mais repleta de boas intenções, mas que, no fundo, também retroalimenta um sistema social injusto e devorador de autenticidades.
Serviço
Clara Cor de Um Silêncio Azul
Teatro Cacilda Becker. Rua Tito, 295.
Sábados e domingos, 16h. Uma sessão extra acontece no dia 19, às 14h30, com tradução em libras
Ingressos grátis, retirar uma hora antes da sessão
Até 18 de abril
Duração: 60 minutos