Em “Denis e a Saga do Abraço”, peça sobre afeto dirigida por Fernando Neves na forma de melodrama circense, a cia. República Ativa conta a história de um menino que veste uma roupa antiga da mãe morta, para matar saudade, e passa a ser julgado por isso, de forma preconceituosa e equivocada
Por Dib Carneiro Neto
Estreou em São Paulo, na semana passada, de graça no Teatro Cacilda Becker, uma peça infanto-juvenil que fala de preconceito de gênero, a partir da singela história de um pré-adolescente que, sentido a falta da mãe, resolve usar um dos vestidos dela como forma de se sentir abraçado novamente por ela, que morreu precocemente. Mas, claro, o mundo é cruel e castrador. Denis, o nome do garoto, passa a sofrer preconceito de gênero, sem ainda nem saber o que é isso.
A peça – Denis e a Saga do Abraço – integra o projeto “A Dialética do Sentido”, da República Ativa de Teatro, contemplado pelo edital da Lei Paulo Gustavo de Manutenção de Atividades no Estado de São Paulo. Para encarar o desafio dessa direção, o grupo chamou um convidado muito ilustre e extremamente gabaritado, ninguém menos do que Fernando Neves, o papa do melodrama circense no circuito teatral paulistano.

Com a palavra, Fernando Neves, o diretor: “O que me atraiu para esta proposta de direção foi a possibilidade de usar o melodrama para conduzir uma história em que o que parece ser não é, usando sua estrutura bipolar, seus conceitos e elementos para conduzir – com muita clareza – o embate entre a sociedade preconceituosa (vício) e o menino que usa um artifício para se sentir próximo da mãe (virtude), trazendo o público para o embate em que o que está em jogo é a felicidade de uma criança”.
O que mais Fernando Neves pediu ao elenco durante os ensaios foi a atenção redobrada na condução do espetáculo. Ele nos ensina: “Quando se mexe com uma estrutura em que drama e comédia se misturam com naturalidade, essa atenção deve ser redobrada para que não se perca a fluidez da história. O melodrama pertence às formas populares, é um teatro de convenção. Então os que estarão em cena são tipos. A orientação era para que fugissem de uma interpretação ‘psicologizada’: não é o drama do meu personagem, mas sim como o personagem é um elemento dentro da cena. E eu reforçava sempre a exigência de detalhes na composição dos personagens e que fosse um trabalho para não levar nenhum sinal, nenhuma indicação de emoção de uma cena para outra. Mais: a consciência de compor alguns personagens de forma mais estereotipada”.
Saber de tudo antes
Neves destrincha um pouco da linguagem conceitual do espetáculo: “No melodrama circense, o público tem que saber de tudo. Sabe mais da história do personagem do que ele próprio. É necessário que assim que o ator entre em cena o público reconheça quem é ele na história. Se o público ficar confuso, a história não anda. O melodrama não perde a plateia de vista. Por isso triangulações, apartes, monólogos e confidências são usados para manter a plateia bem-informada. Não sei se a plateia vai identificar o melodrama na peça – aliás, pouca gente sabe o que é o melodrama, apesar de conviver com ele na propaganda, na novela, nos jornais etc., mas com toda certeza sentirão que algo no espetáculo o diferencia de outros”.

Sobre a estreia, na semana passada, o diretor declara: “Foi muito emocionante, fiquei observando a reação dos pais, das crianças… Durante a peça, eles se aproximavam. Algumas pessoas me contaram ter ouvido comentários das crianças, principalmente em relação ao pai (que ele também estava sofrendo). Eu sinto que temos um espetáculo divertido, emocionante, com domínio do trabalho dos atores por orientação desta interpretação conduzida pelo melodrama – sistema de apresentação que coloca em cena personagens mais dentro da estrutura realista, com personagens mais caricatos, com composições mais sutis etc. Meu prazer é fazer o teatral, o teatro de convenção, que apresenta uma grande variedade de contrastes”.
A palavra da companhia
“Neves é um dos grandes mestres do melodrama em nosso país: oriundo de uma tradicional família circense, possuí um vasto conhecimento na linguagem”, comenta Rodrigo Palmieri, ator e fundador do grupo, que aqui assina também o desenho de luz. “Assim, pudemos criar um espetáculo em que a saga do herói se concretizasse em sua forma mais pura e genuína dentro do melodrama. Denis, o personagem central de nossa história, não se desvia de seu caminho e permanece íntegro em sua busca. A escolha pelo melodrama para este público também se deu pelo enorme desafio, já que foge completamente do habitual. O espetáculo não apresenta cenas de ‘tatibitate’ ou uma fantasia rasa de um herói valente. Mas convida o espectador a mergulhar na trama e se emocionar por meio do olhar de Denis.”
O que Palmieri mais gosta na peça, segundo nos diz, é o fato de ser um “espetáculo feito em camadas”. Ele explica: “Por exemplo, há a camada da história-base, para crianças de 6 a 9 anos; o brilho, a cor e o dinamismo para as crianças menores; a profundidade do tema abordado para os adolescentes e jovens; e críticas à nossa sociedade, destinadas aos pais, professores e adultos. Ou seja, um teatro para toda a família”.

O preconceito é o assunto principal de Denis e a Saga do Abraço, confirma Rodrigo Palmieri. “No início do nosso processo, a vontade era de falar sobre identidade de gênero. Porém, durante os estudos sobre o melodrama circense e após diversos encontros com pedagogos e psicólogos, percebemos que era necessário falar primeiro sobre o preconceito de gênero. Denis usa um vestido na escola pela falta de afeto que existe em sua vida desde a partida da mãe. Usar um antigo vestido da mãe é, para ele, se sentir abraçado por ela. Ele não tem nenhuma questão de gênero. Mas, após o episódio de ele usar o vestido na escola, todos à sua volta passam a discutir as questões de gênero, mas sempre pelo viés do preconceito. Há uma frase que gostamos de utilizar em nosso projeto que diz muito sobre esse espetáculo: Você se sente bem vestido da sua própria opinião?”
Afeto e acolhimento
E, ao falar de preconceito, a peça acima de tudo fala sobre amor, afetividade… Palmieri comenta: “Essa é uma camada que faz os adultos pensarem em como estamos tratando nossas crianças. Ninguém tenta entender o Denis. Ninguém tenta acolhê-lo. Será que estamos mesmo observando as necessidades de nossos filhos, sobrinhos ou vizinhos? Será que abrimos espaço o suficiente para eles falarem sobre o que sentem? Estamos atentos aos sinais de que algo não parece bem? Ou será que, assim como o pai de Denis, estamos tão doentes que não conseguimos olhar para nossas crianças e oferecer o básico: afeto! Essas são questões que muito nos interessam na discussão do espetáculo”.
Sobre a estreia, Rodrigo Palmieri esclarece: “Imagina ter de esperar 5 anos pela estreia de um espetáculo tão profundo quando este? Isso mesmo… Iríamos estrear esta peça em março de 2020, quando a pandemia do covid-19 fechou todos os teatros uma semana antes do grande dia. De lá pra cá, continuamos a pesquisa do melodrama, verticalizando o trabalhando dramatúrgico e de interpretação. No dia 15 de fevereiro, finalmente, estreamos no Teatro Cacilda Becker. Coração a mil, mas certos e convictos do que seria apresentado. E só neste momento que o teatro acontece: no contato com o público. Só aí…”.

E a resposta, segundo ele, foi muito positiva. “O público se emociona demais com a história e se sente muito impactado com as camadas de críticas. As crianças (mesmos as pequenas) fruíram conteúdos da peça que nos surpreenderam. De lá pra cá, além das apresentações em temporada aos finais de semana, também realizamos quatro apresentações destinadas a alunos de escolas públicas da cidade, sempre seguidas de bate-papo. O retorno nos convenceu de que o que temos a dizer chega em nosso público. Foram inúmeros depoimentos, muitas observações positivas e diversos momentos de trocas de saberes, o que, pra nós, é fundamental.”
Palmieri continua: “Em resumo, avalio a estreia e o resultado final do espetáculo como muito positivo. Como Cia, estamos empenhados em levá-lo para o maior número de pessoas possíveis, aos quatro cantos da cidade. É uma peça necessária. Emociona, provoca riso e reflexão. Apresenta um trabalho profundo capaz de dialogar com diferentes públicos, dada sua linguagem popular. Afeto é universal. E o amor é revolucionário!”
Serviço
Denis e a Saga do Abraço
Teatro Cacilda Becker. Rua Tito, 295, Lapa. Tel.: (11) 3864-4513
Sábados e domingos, às 16h. Ingressos gratuitos
Até 9 de março (estreou 15 de fevereiro)