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“Candeia” e “O Poço da Mulher-Falcão” estimulam todos os sentidos do público

Destaques do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto pedem uma participação mais apurada do espectador, que se torna mais que um simples ouvinte

Por Ubiratan Brasil*

O teatro normalmente pede que o espectador fique com a visão e a audição preparadas para melhor fruição das peças. Mas há espetáculos que rompem essa barreira e solicitam a participação de mais sentidos, transformando a experiência teatral em algo mais sensorial. No Festival Internacional de São José do Rio Preto, que termina no dia 27, duas peças se destacaram ao oferecer um novo tipo de comunicação com a plateia.

Candeia, do Grupo Estação de Teatro, de Natal, Rio Grande do Norte, é apresentada no meio da natureza – em Rio Preto, o local foi ao lado de uma frondosa árvore, em um gramado do Sesi. O público é recebido por quatro senhoras que, ao contarem suas histórias, estabelecem uma delicada relação com a plateia. Ao relembrar como uma delas foi acolhida pelas demais, depois de passar por torturas aplicadas pelo regime militar nos anos 1960, o espetáculo arma uma situação de encontro convidativo à transmissão oral da tradição, na qual alguns lugares comuns da identidade nordestina se encontram com a religiosidade.

Cena da peça Candeia. Foto Grupo Estação de Teatro

Assim, lembranças da brutalidade são amainadas com a contação de histórias cotidianas, momentos da vida, quase sem contornos dramáticos mais definidos. Lembranças que vêm à baila durante uma conversa em torno da mesa, tomando um chá, comendo um pedaço de bolo caseiro. Esses pequenos ritos cotidianos tão característicos das cidades distantes das capitais revelam, nos detalhes, o sincretismo cultural e religioso que o constitui.

No meio da conversa, uma das senhoras traz folhas aromáticas para a plateia cheirar, algo como lavanda e camomila. A intenção é criar um momento de tranquilidade, que é coroado no final, quando o público é convidado a tirar os sapatos e fazer um escalda-pés em bacias com água morna devidamente oferecidas. O momento de paz que se institui não é duradouro, mas é eterno enquanto dura. Ao final, o elenco se confraterniza com as pessoas em torno de uma mesa para saborear chás e bolos.

Já o espetáculo O Poço da Mulher-Falcão, da companhia ABX Produções, de São Paulo, é ainda mais sensorial ao unir teatro e dança brasileira influenciada pela tradição japonesa como o butô, campo de pesquisa da coreógrafa Emilie Sugai. Ela divide a cena com dez bailarinos (Diego Brito, Driélly Moyanno, Duda Esteves, Emily Kimura, Jon Marquez, Lenise Oliveira, Lucas Sabatini, Natália Ueda, Suellen Leal e Thiago Sgambato) para, a partir de sons e gestos na penumbra, tratar de questões metafísicas e espirituais, como a aspiração humana à imortalidade e as reconexões entre corpo e alma.

Cena de O Poço da Mulher-Falcão. Foto Ricardo Boni

A iluminação é escassa e, quando surge, é pontual para apenas aguçar a percepção, as sugestões e as evocações de mundos para além do visível. Ouve-se mais do que se vê e, com isso, a imaginação torna-se livre para criar as próprias imagens. Pesquisador do teatro nô, Toshi Tanaka faz participação especial, criando um personagem que remonta à ancestralidade nipônica evocada em filmes de Akira Kurosawa.

Além de dividirem a direção, Emilie Sugai e Fabio Mazzoni criaram a dramaturgia que dialoga com a estética simbolista de tradição europeia, a partir da peça At the Hawk’s Well, do poeta irlandês W. B. Yeats (1865-1939).

Assim, com ouvidos apurados e o olfato temperado por um tipo de incenso aceso durante a encenação (máscaras são oferecidas para quem tem alguma restrição), o espectador usufrui, durante 50 minutos, da possibilidade de construir uma ponte abstrata ao enigma e ao inacessível.

*O repórter viajou a convite da produção do festival

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Ubiratan Brasil

Formado em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da USP, trabalhou com esportes na Revista Placar, Jornal da Tarde, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, no qual fez a transição para cultura. No Caderno 2, foi editor entre 2011 e 2023, período em que cobriu o Oscar, Flip e Feira do Livro de Frankfurt, entre outros

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