Companhia encena, com a ajuda das crianças da plateia, uma importante lição de cidadania: como o espaço urbano precisa considerar mais as infâncias e estimular as brincadeiras ao ar livre de forma segura e saudável
De Dib Carneiro Neto (publicada em 11 de abril de 2025)
Um dos grupos paulistanos de teatro que mais se preocupa em integrar a paisagem urbana à sua dramaturgia é o Grupo Esparrama, que completa 12 anos de trajetória em 2025. Entre muitos projetos, a companhia sempre é lembrada por ter criado o Teatro de Janela, que realiza apresentações cênicas na janela de um apartamento no centro da cidade de São Paulo. No ano passado, o coletivo estreou o espetáculo ‘Acorda!’, que ganhou o Prêmio APCA e era encenado em uma janela inédita, a do CCBB São Paulo.
Seu mais recente espetáculo ao ar livre, Cidade Brinquedo, que este ano já fez uma temporada-relâmpago, está de volta, grátis, agora na rua central do Sesc Pompeia, a partir de sábado, dia 12. “Brincar, brincar, brincar até a cidade virar brinquedo.” Essa frase é repetida várias vezes durante a peça, que procura jogar luz sobre o quanto brincadeira é coisa séria, muito séria. ”O brincar para a criança é linguagem, é como elas experimentam e dão nome ao mundo, então, de certa forma, brincar também é a possibilidade de inventar novas possibilidades de mundo”, comenta sabiamente Iarlei Rangel, diretor do espetáculo e da companhia.

Iarlei fala sobre a precária relação das grandes cidades brasileiras com as infâncias. Ele argumenta: “As grandes cidades são planejadas sob uma lógica adultocêntrica excludente que, entre outros prejuízos, tem reduzido cada vez mais os espaços para o brincar. Lembremos que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU garantem o direito ao lazer, à brincadeira e à participação na vida cultural, mas esses direitos são frequentemente ignorados no planejamento urbano. Diante desse cenário, o projeto Cidade Brinquedo nasce da necessidade de discutir e reivindicar a cidade como um território de vivências e formação para todas as infâncias”.
Quando a rua é o quintal
O diretor relembra como foi que brincou em sua infância. “Tive o privilégio de passar parte da infância na Baixada Santista e outra parte no sul da Bahia, em um momento em que as ruas ainda eram locais seguros para o brincar. A vizinhança toda cuidava de todas as crianças, como se fossem suas. Nossas casas não tinham espaço, então a rua era nosso quintal. Era muito engraçado ver que as mesmas brincadeiras tinham nomes diferentes aqui e lá. A amarelinha daqui chamava-se macaco na Bahia. A queimada de São Paulo era chamada de baleado, lá. Mas acho que a minha preferida era o esconde-esconde”, diz Rangel
Cidade Brinquedo repete a parceria do Grupo Esparrama com Bobby Baq na dramaturgia, após o sucesso de Acorda!. “Bobby Baq é poeta e, como todo bom poeta, tem essa capacidade de ‘criançamento’ das palavras, como dizia Manoel de Barros”, declara Iarlei Rangel sobre o parceiro dramaturgo. “Mas Bobby também é um artista do teatro, com um olhar cuidadoso para contar histórias com e sem palavras. No espetáculo Acorda!, nos apaixonamos pela generosidade com que escutou e nos provocou e isso foi muito importante porque, no processo de criação do Cidade Brinquedo, nós conquistamos uma intimidade para experimentar uma dramaturgia desafiadora, pois contamos com a participação ativa das crianças em muitas decisões.”

Iarlei se refere à “comissão de crianças“, prática que o Esparrama adotou recentemente: ouvir o que as crianças querem que esteja na peça. Foram 15 crianças, de 7 a 13 anos, vizinhas do Grupo Esparrama (região central de São Paulo, próximo ao Minhocão), selecionadas por um chamamento público, que se reuniram durante quatro sábados na EMEI Gabriel Prestes. “Certamente esse foi o nosso maior desafio: como desenvolver uma cena que realmente esteja atenta ao discurso das infâncias”, diz o diretor. “Há tempos, temos desenvolvido procedimentos para inserir as crianças na cena e em Cidade Brinquedo conseguimos avançar ainda mais. Para tanto, foi essencial criarmos o primeiro Conselho de Crianças do Esparrama. Foram elas, por exemplo, que nos indicaram não só a forma como poderíamos conduzir a participação das crianças na peça, mas, sobretudo, foram elas que nos mostraram a urgência em discutir o tema do brincar.”
Violar as regras
Em Cidade Brinquedo, quatro palhaços inventam brincadeiras no espaço público junto com as crianças da plateia, experimentando uma nova ideia de cidade. Porém, o personagem Arquivaldo Regrário, que toma conta das regras da cidade, entra em cena para esclarecer que eles não podem violar as regras e que suas brincadeiras não podem acontecer nas ruas. O elenco é formado por Fabiana Carqueijo (Puntiléia), Laruama Alves (La Rosa), Lígia Campos (Pafúncia Maionese), Kleber Brianez (Arquivaldo Regrário) e Rani Guerra (Batatinha).
Esse lance de fazer cidadania rimar com palhaçaria já virou marca registrada do Esparrama. Iarlei Rangel explica: “A palhaçaria, assim como a criança, tem essa capacidade de romper o fluxo automatizado da vida. Os palhaços e as palhaças criam lacunas na lógica do cotidiano e nos despertam para nossas inadequações. Essa capacidade é extremamente importante para o desenvolvimento da cidadania. Precisamos estar sempre atentos para garantir que nossa sociedade permaneça democrática, justa e igualitária”.

Iarlei nos conta também como foi a temporada anterior de Cidade Brinquedo e se algo vai mudar nesta temporada a partir do que se passou na primeira. Ele responde: “Estávamos muito apreensivos, pois propomos algo muito arriscado: o espetáculo só existe com a participação da plateia, tanto dos adultos, quanto das crianças. Tínhamos muitas dúvidas, então a primeira temporada, apesar de muito curta, foi essencial para experimentarmos os procedimentos que planejamos. E o resultado foi maravilhoso, ocupamos três espaços diferentes e nos divertimos muito. Para a nova temporada não teremos grandes mudanças, mas quem já assistiu sabe que cada apresentação é totalmente diferente, já que a plateia participa todo dia, sempre trazendo novidades.”
Serviço
Cidade Brinquedo
Sesc Pompeia – rua central da unidade. Rua Clélia, 93
Sábados, 11h e 16h30. Sessão também dia 21/4. Grátis
Até 26 de abril (estreia dia 12 de abril)