Com concepção, texto e atuação da contadora Ori-Okan, o espetáculo “Marias”, no Sesi, fala de rezas e cantos ritualísticos de forma leve e envolvente, sem tons de catequese nem preconceitos de qualquer ordem
Por Dib Carneiro Neto (publicada em 23 de maio de 2025)
Uma criança e uma pessoa mais velha são as personagens de Marias, montagem que, de forma incomum em peça infantil, põe em cena as práticas religiosas da nossa tradição afro-brasileira, como o benzimento e as rezas cantadas pelo Brasil afora. Mas nada é catequético nem ofensivo às outras religiões. Marias, com direção de Aiyrá Laura e, em cena, a atriz, contadora, historiadora, produtora cultural e arte-educadora Ori-Okan, faz temporada gratuita de 24 de maio a 21 de junho, sábado e domingo, às 15h30, no Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo.
O espetáculo nasceu em abril do ano passado e até agora foi apresentado apenas cinco vezes. O enredo é tão encantador quanto intrigante: uma serpente d’água, colorida e mágica, narra o encontro inesperado entre Maria Flor, uma criança curiosa que sonha em ser escritora, e Vó Maria, a benzedeira do bairro que vive muito cansada e desacreditada de seu ofício. Um benzedeira desacreditada do ofício? Que personagem diferente para uma peça infantil, não é?
“A personagem está triste porque ninguém mais vem à sua casa”, conta Ori-Okan, a criadora da trama. “Sua casa vivia cheia de gente e agora está vazia. Ninguém mais faz questão de descer o caminho do rio para visitá-la, uma referência clara à época de isolamento da pandemia. Além disso, à medida que sua cidade foi virando uma cidade de tempo acelerado, perde-se o interesse por benzedeiras. As pessoas pararam de se importar com o simples da vida, um abraço demorado, uma xícara de café à mesa. Benzer é muito mais do que só o ato da reza, é também a partilha que se estabelece entre as pessoas, desde o momento em que se entra na casa de um rezador. O rito do benzimento dura no máximo dez minutos, mas tem toda uma prosa, uma troca, um acolhimento demorado, cheio de afeto e amor.”

Ori-Okan, com sua voz doce e cadenciada, nos conta que essa história veio para ela na forma de um sonho, durante a pandemia. Naquela época, ela fazia, como historiadora, mestrado na Unicamp, pesquisando um tema insólito: o discurso da morte no século 15. “De repente, com a crise sanitária da covid 19, eu passo a enxergar a morte diariamente, sem o olhar distanciado do historiador. Aquilo me envolveu e mexeu muito comigo. A parte desacreditada da Vó Maria vem um pouco disso também, das minhas dúvidas quanto ao ofício de historiadora em um momento de isolamento social forçado. Mas também a personagem é inspirada em dois benzedeiros que tive na minha infância, Seu Everaldo e Dona Carmem, pessoas comuns, mas sábias, do interior paulista.”
Falar de práticas religiosas e rezas cantadas é inusitado em espetáculos para crianças, sobretudo em tempos de tanta intolerância. “Sim, é notável que o tema incomoda”, admite Ori-Okan. “Mas as crianças sempre recebem muito bem, se divertem, brincam, querem cheirar as ervas que trago em cena. Já a parte adulta das plateias me olha com cara desconfiada e demora para aceitar o espetáculo. Percebo isso.”
A artista acabou por achar um caminho cênico que ajuda a romper essa indisposição inicial dos adultos a aderir ao tema. Ela diz: “Eu acho que a grande ferramenta que o teatro tem em mãos é o brincar, falar de questões densas brincando, se divertindo. Sobretudo nós, o povo preto, de cultura afro-diaspórica, precisamos mostrar esse lugar da alegria, da magia, do encantamento. Cantos, rodas, sorrisos – isso é cultura negra. São essas as práticas de sobrevivência que o povo preto teve de desenvolver, frente à escravização. Como autora e artista, esse lugar da alegria e da brincadeira é que me interessa. Para mim, Marias nunca será apenas uma peça, uma narração de histórias. É um projeto político-educativo que visa a construção de uma rede de educação antirracista e de combate aos preconceitos ético raciais, etários e religiosos, por meio da arte.”

Acompanhada pelo músico Pedro Anansi, Ori-Okan canta lindamente em cena. Ela opina sobre sua modalidade de fazer teatro: “Eu tenho visto que os contadores de história estão numa pegada desafiadora atualmente. Há peças que narram sobre povos originários, povos pretos, pessoas com deficiências, ou seja, temos hoje uma gama maior de narrativas plurais e diversas, por isso é preciso ter muito mais sensibilidade para encarar essas narrativas. Não basta mais só abrir o livro e ler, por melhor que isso seja feito. Precisamos criar, procurar novas ferramentas cênicas. Isso tem sido bem explorado por alguns artistas. Tenho como referências a própria Aiyrá Laura, indígena, filha de palhaça, diretora desse espetáculo, Doroty Marques, educadora social em Campinas, que trabalha sobretudo com a cultura do Maranhão, e também a maranhense Ana Maria Carvalho, mestra da cultura popular, outra que muito me ensina.”
E como encarar a criança de hoje, como atrair o interesse dos pequeninos antenados e tecnológicos para espetáculos de valorização de tradições e ancestralidades? Ori-Okan tem duas medidas que sempre toma: “O primeiro ingrediente e o mais importante de todos é escuta. Escutem as crianças. Falo isso porque tenho certa experiência como educadora e oficineira em serviços de convivência na cidade de Campinas, então sempre que eu posso compartilho com essas crianças o meu trabalho, nas fases de criação. É muito bacana ouvir as crianças, com seus olhares muito perspicazes até sobre dramaturgia. Estamos mais preocupados com objetivos, impactos, ensinamentos, mas os detalhes quem vê são as crianças. Há, por exemplo, um cachorro na trama de Marias e eu abandonava esse personagem pelo caminho, sem explicação. Uma criança, nos ensaios, me perguntou: ‘Mas e o que aconteceu com o cachorro?’ Segundo tempero para atrair público, a meu ver, é a música, porque ela nos envolve, nos dá vontade de batucar, de dançar, Sou cria de teatro musical e sou muito a favor de ter sempre esses momentos cantados dentro das narrativas.”
Serviço
Marias
Centro Cultural Fiesp [Espaço Mezanino] – Avenida Paulista, 1313
Sábado e domingo, 15h30 (dia 21 de junho, sábado, duas sessões: 11h e 15h30)
Grátis. Reservas pelo Meu Sesi no site sesisp.org.br/eventos
Até 21 de junho (estreia 24 de maio)