Ao montar o espetáculo “Barco Mundo”, apoiado em máscaras e música ao vivo, o grupo paulistano busca nas pesquisas da ancestralidade a chave para a compreensão do que pode vir a ser um futuro realmente sustentável
Por Dib Carneiro Neto (publicada em 9 de maio de 2025)
Admirável é o empenho dos artistas de teatro em levar, para as crianças, todo e qualquer tema da atualidade, sem medo de barreiras intransponíveis, sem preconceitos, sem subestimar a inteligência dos pequenos. Estreou, por exemplo, em São Paulo, o espetáculo infanto-juvenil Barco Mundo, do Coletivo de Galochas, que tem 15 anos de jornada. A peça fala de crise climática. E não é aula. É teatro. Feito com todos os cuidados possíveis para não incorrer em erros conceituais ou correr o risco de ficar chato e maçante. ‘Barco Mundo’ tem dramaturgia de Rafael Presto e direção de Daniel Lopes e faz temporada no Sesc Pinheiros.
No palco, a gente vê quatro animais encantados – Onça-Pintada, Macaco-Prego, Perereca-Usina e Cachorro Caramelo. Eles velejam no barco guiados pela Árvore Ancestral na busca pela Máquina do Lucro, que destruiu a floresta onde moravam. Não é uma ideia ótima? Com música ao vivo e linguagem artística de máscaras, a montagem tem cenografia artesanal (tecidos pintados e objetos de papel e papelão), criada pela artista Beá Meira. Ouvir (ler) o que pensam o autor e o diretor da peça é uma preciosidade que ninguém deveria perder. Aprendemos muito com eles, que deixam em nós uma vontade grande de ir correndo ao Sesc Pinheiros, levando nossas crianças, claro. Vejam só:
Com a palavra, o dramaturgo
Por que é importante falar da crise do clima com as crianças?
Rafael Presto: “Curar o mundo é sonhar o futuro.” Essa fala do Barco Mundo é uma boa síntese da bússola temática da peça. Abordar a crise climática envolve refletir sobre o amanhã, disputar a esperança, construir sonho. Tecer uma poesia capaz de superar as visões de fim do mundo. Sou pai de duas crianças pequenas, o Tiago, 4 anos, e o Francisco, 1 ano. É preciso que haja futuro. Que o céu não desabe ainda mais sobre as nossas cabeças. Construir uma nova aurora. Tarefa difícil diante de um mundo hostil, pouco acolhedor, em acelerado processo de destruição e desigualdade.

Que caminhos você escolheu para tratar desse tema?
Alguns caminhos foram escolhidos na premissa do trabalho, que definiram rumos para tratar desse tema da crise climática na dramaturgia da peça. Uma delas foi a de trabalharmos com teatro de máscaras. A máscara exige uma cena ágil, com situações recheadas de ações físicas, personagens em movimento. Isso garantiu um tom dinâmico para a narrativa. Foi também essa escolha que inspirou os personagens animais encantados, meio bicho meio gente, ancestrais e guardiões da floresta (inspirados por sua vez nos xapiris da cosmologia yanomami). Foi assim que chegamos na onça-pintada, na perereca-usina, no macaco-prego, no jacaré e no casal de araras: animais que habitam a lista vermelha de risco de extinção no Brasil. Para completar esse grupo de animais personagens, era preciso uma criatura da cidade, capaz de fazer a ponte entre o universo da floresta e o universo urbano, lugar onde mora o público que vai ao teatro ver nossa peça. Dessa necessidade surge o Cachorro Caramelo, também acolhido no Barco Mundo, sobrevivente de um mar de lama que engoliu sua cidade. Com isso, somamos outra temática sensível para a narrativa da peça, apresentada de maneira intensa e aventuresca. Mas o signo definidor do eixo de abordagem da peça veio do livro do Malcom Ferdinand, Uma ecologia decolonial (Ubu Editora, 2022), que investiga essa imagem-conceito do Barco Mundo, evocada enquanto forma de curar a fratura entre a luta ecológica, a luta contracolonial e a luta contra o capitalismo. Logo a peça tomou forma nessa miragem dos animais encantados que perdem sua floresta e saem navegando nesse Barco Mundo. Dessa premissa surge a narrativa. Outras leituras foram muito importantes para o desenvolvimento da peça. Destaco A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (Companhia das Letras, 2015), Futuro Ancestral, de Ailton Krenak (Companhia das Letras, 2022) e Águas de Homens Pretos, de Allan da Rosa (Veneta, 2021).
Qual seu desafio maior em transformar esse tema em um espetáculo agradável e lúdico?
Parte do desafio da criação dessa narrativa passava justamente por essa pergunta: como explorar o tema da crise climática, um tema grave, constante, ameaçador, de uma forma lúdica, deleitosa, pensando o público das crianças de todas as idades, certamente, mas também para o adulto que está lá, acompanhando essa criança. Porque além de árido é também um tema bem complexo, que exige um manejo cuidadoso. A estrutura de uma grande saga, com uma história ágil, intensa, com personagens envolvidos na jornada, foi um primeiro caminho escolhido. Uma fábula bem contada, a aventura desses animais encantados remando o Barco Mundo na busca por descobrir quem queimou a floresta em que viviam e como parar essa força da destruição. Outra escolha foi o abandono do didatismo explícito. A temática da crise climática percorre o espetáculo de maneira bem nítida nos seus signos: o incêndio da floresta, o mar de lama, o rio poluído, a cidade violenta, todos esses incidentes e lugares sofrem pela ação dos Acionistas da Corporação com sua terrível Máquina do Lucro. Mas esses assuntos não são explicados de maneira didática, mas sim participam como forças atuantes na grande jornada dos tripulantes do Barco Mundo ao longo da peça. Acreditamos que assim a narrativa cumpre sua tarefa de sensibilizar as crianças (e os adultos) com esses temas, identificando-os de maneira sensível, demarcando quais são as forças que agem para produzir a destruição da Terra. A música foi uma imensa aliada nessa tarefa de abordar o tema e narrativa de maneira imersiva e sensível, com todos os méritos para as composições do nosso diretor musical Antonio Herci, que toca piano e violão na peça. Eu, além de dramaturgo, também toco, faço a percussão, com zabumba, pandeiro, caxixis e efeitos. E a Nina faz a sanfona. Formamos o Trio do Jacaré. As letras das canções retomam os temas da peça de um ponto de vista épico, amplo e complexo, mas explorados de maneira sensível e profunda, acessível e emocionante para crianças e adultos. Uma curiosidade aqui: Antonio Herci é também meu pai. E a sanfoneira é minha esposa, que também toca e compõe para teatro. Nosso Trio do Jacaré é uma banda em família! Por fim, havia desde o começo a perspectiva de construir uma narrativa solar, apesar de tudo. Nesse tempo turbulento que atravessamos, com a destruição do mundo batendo na soleira da porta, me parece que uma importante tarefa dos trabalhadores da cultura (especialmente dos escritores, dramaturgos e roteiristas, como eu) seja disputar a esperança, construir utopia, gestar futuro. Espero que o ‘Barco Mundo’ possa contribuir nessa disputa dos imaginários e dos sonhos.
E o que diz o diretor Daniel Lopes?
O que, na sua opinião, há no espetáculo que mais atrai as crianças e por quê? E para a plateia de adultos, o que mais encanta?
Daniel Lopes: A encenação da peça Barco Mundo partiu da premissa de convocar o público de todas as idades para embarcar em uma jornada mágica e reflexiva. A peça traz a linguagem lúdica do teatro de máscaras para abordar temas urgentes como a crise climática e a desigualdade social, sob uma perspectiva sensível e poética. O trabalho teve início com a fascinante criação das máscaras dos animais-xapiris, com forte influência na rica tradição das festas populares brasileiras. Além de diretor do espetáculo sou também mascareiro e pesquisador dessa linguagem, e o desenvolvimento dessas máscaras foi parte essencial de todo o processo. Esse tipo de teatro têm o poder de transformar atores e atrizes em seres fantásticos, resgatando a essência do teatro como espaço do “faz de conta” – um universo essencial para a imaginação infantil e que, muitas vezes, é negligenciado na vida adulta. Um dos pontos altos da peça é a sua musicalidade, conduzida com sensibilidade e poesia pela direção musical de Antônio Herci. Através da música, temas complexos como a crise climática e a desigualdade social são apresentados de forma acessível e emocionante, convidando à reflexão e ao diálogo.

O coletivo persegue as pesquisas sobre formas de atuação “político-poéticas”. Fale um pouco sobre o que é isso e como isso aparece em cena.
A crise ambiental que enfrentamos está intrinsecamente ligada a uma “crise de imaginação”, uma dificuldade em conceber formas de existência que transcendam a exploração desenfreada. A construção de um futuro sustentável passa pelo resgate do imaginário cultural de povos que vivem em harmonia com a natureza, defendendo a ideia de que “o futuro deve ser ancestral”, ecoando a sabedoria de Ailton Krenak sobre a importância de sintonizar o coração com o ritmo da terra. Acreditamos que a história que contamos é do interesse de todos os seres vivos que resistem à ambição e à violência de um habitar ainda colonial. Barco Mundo é um convite para crianças e adultos redescobrirem a importância de brincar, imaginar e, juntos, construir um futuro mais justo e em equilíbrio com o planeta.
Serviço
Barco Mundo
Sesc Pinheiros (Auditório). Rua Paes Leme, 195
Domingos, 15h e 17h. R$ 40 – gratuito para menores de 12 anos. Dia 25 de maio: ingressos gratuitos, na Virada Cultural
Até 8 de junho (estreia em 4 de maio)