Dirigida por Ana Rosa Genari Tezza, peça funde linguagem de cabaré, circo, bonecos e fragmentos de García Márquez, Borges e Vargas Llosa para celebrar o sucesso de uma companhia preocupada com o público
Por Dirceu Alves Jr.
Fundada em 2010, a companhia curitibana Ave Lola realiza a primeira temporada independente em São Paulo com o espetáculo Cão Vadio, em cartaz no Teatro Estúdio, nos Campos Elíseos. Antes, as peças O Malefício da Mariposa (2013), Tchekhov (2014) e Nuon (2017) passaram pela cidade trazidas pelo Sesc. A reação da plateia é surpreendente, e o boca a boca tem garantido uma ocupação considerável do espaço desde a estreia, no dia 31.
Desta vez, o grupo, criado pela atriz, dramaturga e diretora Ana Rosa Genari Tezza, de 56 anos, enfoca a diversidade social, cultural e política latino-americana apoiada em uma estética de cabaré que funde linguagens e correntes teatrais. “Nada melhor para retratar a América Latina que um cabaré, não é?”, pergunta Ana Rosa. “Por isso, vamos das estéticas circenses e da manipulação de bonecos às obras de Anton Tchekhov e William Shakespeare e temos uma colcha de retalhos riquíssima.”
Ave Lola é uma expressão de espanto usada na Espanha, algo equivalente ao nosso “Ave Maria!” e traduz muito do que é visto no palco. Dos vinte integrantes do grupo, dez deles estão em cena – são oito atores e atrizes e dois músicos – em um recorte de crônicas sobre personagens marginalizados, que, como diz o texto, vivem à borda do mundo. Eles habitam um território chamado Cão Vadio, que pode ser tanto uma metáfora para a libertadora arte da representação como para os porões claustrofóbicos da repressão, lugares de onde não se consegue escapar.
Alguns fugiram para lá, outros chegaram carregados à força e tem ainda quem foi levado pelo vento. Entre a poesia e o surrealismo, uma trupe enfrenta as adversidades para colocar de pé um espetáculo em tempos de opressão. “A gente não produz obras herméticas por uma postura política e fazemos questão de contar histórias acessíveis a qualquer espectador”, garante Ana Rosa. “O público brasileiro ainda não formou uma bagagem suficiente para que os artistas resolvam nichar ainda mais o teatro, não condeno quem faz, mas não é a nossa.”
Em busca desta comunicação, a dramaturgia de Cão Vadio recorre a uma pesquisa sobre o realismo fantástico que se sustenta em fragmentos de obras de uma célebre trinca de escritores: o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) e o peruano Mario Vargas Llosa. “Muita gente já ouviu falar da personagem Erêndira ou do livro Cem Anos de Solidão e, mesmo que não tenha lido García Márquez, pode se interessar em saber como aquilo será levado ao palco”, justifica a autora e diretora.
Para Ana Rosa, um de seus orgulhos à frente da companhia é a formação de plateia. Com sede própria em Curitiba desde a fundação, o Ave Lola recebe muitas pessoas que jamais pisaram em um teatro e é comum vê-las de volta trazendo familiares e amigos que também usufruem pela primeira vez da experiência artística. “Acho importante a experimentação porque ela faz o teatro avançar, mas sei que nosso público é majoritariamente leigo e buscamos a amplificação deste diálogo até para que, mais tarde, ele se interesse por outras peças”, reconhece.
A nova sede da companhia, aliás, em fase de obras, tem feito Ana Rosa ir e voltar de Curitiba durante a temporada paulistana. O Ave Lola deixou o imóvel que ocupava no centro da capital paranaense e comprou um terreno de 2 mil metros quadrados entre os bairros de Mercês e São Francisco. Uma antiga casa, parte de alvenaria e parte de madeira, vai receber uma biblioteca, um bistrô, salas de ensaios e os escritórios de produção. Uma tenda para até 200 espectadores foi levantada no pátio e será o principal palco até a conclusão de um teatro de estrutura modulável, com capacidade semelhante, prevista para o ano que vem.
É só falar nas obras da sede que volta à memória de Ana Rosa não só a história do Ave Lola como sua própria biografia. Em meados da década de 2000, ela integrava como atriz o grupo Arte da Comédia, especialista em montagens de rua e na pesquisa do uso da máscara, e coordenava as montagens de formatura dos alunos do Colégio Internacional, também na capital paranaense. “Eu era apenas uma atriz, não me imaginava com capacidade de liderança e queria voltar a atuar em salas de teatro”, diz. “Minha mãe me estimulou muito a começar a dirigir profissionalmente, afinal, segundo ela, eu já fazia isto no Colégio Internacional, e, um dia, chegou com a notícia de que alugaria uma casinha para eu criar a minha companhia.”
Ana Rosa levou um susto, e a primeira sede do Ave Lola acomodava 37 pessoas sentadas em almofadas e, no máximo, outras dez de pé. Uma tristeza do destino se encarregou de dar energia para a artista ser persistente no compromisso assumido. Logo depois de assinar o contrato de locação do imóvel, a médica Marly Genari, de 68 anos, descobriu um câncer avançado, morreu em seis meses, e Ana Rosa, bastante apegada à mãe, quase perdeu o eixo. “A casa ficou lá como um jardim a ser cuidado, precisava me virar para pagar o aluguel, sustentar minhas filhas e, assim, comecei a curar meu luto”, lembra. “O Malefício da Mariposa, a primeira peça, estreou em 2011 e teve repercussão nacional, depois veio Tchekhov e me convenci de que poderia ser a cabeça de uma trupe, fazendo uma colaboração carinhosa com todos.”
As duas filhas da artista cresceram e se juntaram ao Ave Lola. Laura, de 27 anos, é coordenadora de produção e captadora de recursos e Helena, de 26, é atriz e integra o elenco de Cão Vadio. Com 14 anos de atividades, a companhia já recebeu mais de 40 indicações para prêmios regionais e nacionais, venceu 30 deles, circulou por boa parte do país, Chile e Dinamarca e representou o Brasil na Quadrienal de Praga. “Quando vi se passaram 15 anos que a minha mãe alugou aquela casa e acho que consigo honrar a intuição que ela teve.”
Serviço
Cão Vadio.
Teatro Estúdio. Rua Conselheiro Nébias, 891, Campos Elíseos.
Quinta a sábado, 20h; domingo, 18h. Ingressos distribuídos uma hora antes na bilheteria. Pague o que considerar que vale no fim da sessão.
Até 1º de dezembro (estreou 31 de outubro)