O ator Eduardo Mossri e a atriz Ana Cecília Costa protagonizam peça escrita por Duca Rachid em diálogo com o original de José Eduardo Vendramini
Por Dirceu Alves Jr. (publicado em 2 de abril de 2025)
Em 2004, o ator paulistano Eduardo Mossri chorou a morte de sua avó paterna, Emília Elias, e recebeu de herança algo que seria transformador em sua história. Dezenas de cartas amareladas pelo tempo, algumas com mais de oito décadas desde que foram escritas, chegaram até as suas mãos. Era a correspondência do avô, Antônio Mossri, que se mudou para o Brasil em 1923 e morreu em 1976, com os familiares que ficaram no Líbano.
Detalhe é que Eduardo Mossri, apesar da ancestralidade, não fala ou lê em árabe e, por muito tempo, até encomendar a tradução de algumas missivas, ficou intrigado com o conteúdo. O assunto quase sempre girava em torno de saudades, notícias da rotina no país desconhecido e a gratidão pelo acolhimento na nova terra.

Em uma conversa com o dramaturgo José Eduardo Vendramini, que foi seu professor na USP e descende de libaneses, surgiu a inspiração para uma peça. Entrevistas com imigrantes e familiares e uma farta pesquisa sobre o comportamento dos imigrantes renderam o monólogo Cartas Libanesas, escrito por Vendramini, protagonizado por Mossri e dirigido por Marcelo Lazzaratto em 2015.
O espetáculo estreou discretamente no Projeto Mínimo do Sesc Ipiranga, ampliou plateias e foi aplaudido em Tânger, no Marrocos, em 2016, e, no ano seguinte, em Beirute e Kaslik, no Líbano. “O Vendramini se interessou porque pareceu um jeito de falar das memórias das nossas famílias e nunca pensei que o projeto chegaria tão longe”, comenta Mossri, de 43 anos. “Cartas Libanesas virou a minha lojinha e eu o mascate de mim mesmo.”
Dez anos depois, Cartas Libanesas continua sendo apresentado aqui e acolá, mas ganha um derivado tão ou mais interessante e de conteúdo urgente. Cartas Libanesas: Ayuni, que estreia no Teatro do Sesc Ipiranga na sexta, 4, é um diálogo inédito da dramaturga Duca Rachid com a obra de Vendramini. O texto dá voz a Adibe (interpretada por Ana Cecília Costa), a mulher de Miguel (personagem de Mossri), mascate que veio fazer a vida no Brasil em 1914. Se, na primeira peça, a figura feminina era só citada nas correspondências, na montagem dirigida por Georgette Fadel e Luaa Gabanini, a esposa grávida, que sofreu com a ausência do marido, tem a espera descrita pelas próprias palavras.

Mossri afirma que sempre imaginou como seria Adibe, quais traços marcariam o seu rosto e o tom da sua voz. Com os avanços da representatividade na última décadas, o ator enxergou que era a hora de presentificar esse corpo feminino e, mais que isso, ter a versão da mulher, quando, na maioria dos casos, encontra-se a narrativa masculina, Foi Vendramini quem sugeriu o nome de Duca, coautora de novelas marcantes como Cordel Encantado, Joia Rara e Órfãos da Terra, para construir o novo texto.
Assim como ele e o ator, Duca descende de libaneses, e, para completar a “lojinha”, a entrada no trabalho de Georgette Fadel, também de família libanesa, e Luaa Gabanini aumentou o eco feminina. “A gente tem o texto do homem como ponto de partida e vem as respostas dela em seguida”, explica Mossri. “Pensei em fazer apenas um monólogo da mulher, mas entendemos que o melhor seria os dois dançando juntos.”
Ana Cecília enxerga em Adibe um pouco da inspiração de Penélope que, na mitologia grega, aguardou Ulisses por mais de uma década enquanto o marido lutou na Guerra de Troia. A intérprete salienta, porém, que que não se trata de uma espera passiva, o que demonstra a força invisibilizada de quem viu seu homem partir e precisou lidar com o cotidiano. “Adibe trabalhou, batalhou, pariu um filho e, claro, carregou a angústia natural de quem esperava mais de três meses pela resposta de uma carta sem saber se o marido estava vivo”, diz. “Mas nada foi romantizado, ela vive em uma estrutura machista e abrimos frestas para falar do seu desejo sexual, que se fosse consumado poderia virar maldição, deixá-la com a marca da adúltera.”

A atriz está cada mais sensível às questões do apagamento feminino e analisa itens aparentemente básicos que já conotam um comportamento machista, como o sobrenome da mulher que pode não ser passado aos filhos ou as diferenças nas educações de crianças de gêneros diferentes. “Fui criada entre quatro irmãos homens e vejo que recebi orientações bem diversas daquelas que eram passadas a eles”, observa Ana Cecília. “É hora de trazer à tona a história destas mulheres porque se tornou inadiável e fundamental ouvi-las e enxergá-las.”
Serviço
Cartas Libanesas – Ayuni.
Teatro do Sesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga.
Sexta e sábado, 20h; domingo e feriados, 18h. R$ 60.
Até 23 de maio (estreia 4 de abril)