O clássico do russo Dostoiévski chega ao palco do Sesc Pompeia em adaptação fiel à história, mas subverte conceitos de gêneros e raças na escalação do elenco
Por Dirceu Alves Jr.
Assim que leu Os Irmãos Karamázov, o psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) foi incisivo. Ele considerou o romance do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) o maior já escrito e, ao lado das peças Édipo Rei, de Sófocles, e Hamlet, de William Shakespeare, uma das três mais importantes histórias sobre o embate entre pai e filho que embasa a sua teoria sobre o complexo de Édipo.
Ambientado na Rússia czarista, o livro enfoca uma família dilacerada pelo autoritarismo do pai, Fiódor, e a sua conturbada relação com os três filhos de personalidades opostas. O libertino Dmítri, o cético Ivan e o bondoso Aliocha, porém, passam por cima das diferenças existenciais em nome de um objetivo: se livrar do pai abusivo, nem que para isso seja necessário recorrer a uma ação extrema, o parricídio.

Mais de um século separam a leitura de Freud para a do ator Caio Blat em relação ao clássico de Dostoiévski. Pouco mais que um adolescente, Blat já era um artista aos 18 anos e, depois de devorar as mais de oitocentas páginas, ficou inconformado com o fato de que um autor tão popular em sua época, publicado em jornais, tenha chegado ao fim do século XX com a pecha de erudito e pouco acessível ao público. “Vou transformar essa história em uma peça de teatro popular para que todos entendam o valor desta obra”, pensou o rapaz, na época, que ainda morava em São Paulo e consolidava os primeiros passos profissionais.
O tempo deu um salto, e Blat, morando no Rio de Janeiro, conheceu o sucesso, ganhou estofo e maturidade artística, não só como ator, mas no papel de diretor, em incursões no cinema, na televisão e no teatro. Aos 44 anos, ele concretiza o desejo de colocar Os Irmãos Karamázov em cena em um projeto coletivo, levantado com o apoio de parcerias duradoras. O espetáculo, que estreou no Rio na primeira semana do ano, chega ao Sesc Pompeia, em São Paulo, nesta quinta, 27, e, na visão do diretor, é uma “ópera-rock” frenética e vibrante.

Na adaptação do romance, que consumiu uma década, Blat divide os créditos com o dramaturgo Manoel Candeias e, para assinar em conjunto a direção da montagem, conta com a atriz e encenadora Marina Vianna. A ação é concentrada nos três dias que antecedem a grande tragédia familiar. “Eu não gosto de introduções, prefiro ver o ‘bicho pegar fogo’, a crise instaurada, então, já mostro os irmãos articulando como podem se livrar do pai”, justifica o coadaptador e codiretor. “Esses três dias são suficientes para revelar a alma dos personagens.”
Além de Blat e Marina, Os Irmãos Karamázov reúne um elenco de outros treze artistas, como Babu Santana, Lucas Andrade, Luisa Arraes, Nina Tomsic, Pedro Henrique Muller e Sol Miranda, entre outros, em uma proposta de criação coletiva pautada pelas diferentes compreensões da obra confrontadas com as vivências de cada um. “Quando comecei a pensar na viabilização do projeto, eu imaginava convidar um grande diretor, como o Marcio Aurelio ou a Cibele Forjaz, mas, com a maturidade, me senti pronto e chamei a Marina para ficar comigo lado a lado”, afirma. “Fizemos tudo em dupla, embora ela naturalmente tenha cuidado mais das interpretações, da investigação emocional dos personagens e eu me concentrei no texto e na encenação.”

Marina também leu o livro de Dostoiévski muito nova, aos 20 anos, quando atravessava um momento traumático que poderia ter freado sua vocação artística. Em 1989, a jovem carioca trancou a faculdade no Rio e veio para São Paulo integrar o CPT (Centro de Pesquisa Teatral), comandado pelo diretor Antunes Filho (1929-2019). “Eu fui expulsa meses depois porque o Antunes alegou que eu exercia uma liderança paralela junto ao grupo e deveria me contentar em fazer novela”, lembra a artista hoje, aos 56 anos, doutora em teatro, com trabalhos em grupos importantes, como a Cia. dos Atores e a Cia. Vértice, dirigida por Christiane Jatahy, e sem novelas no currículo. “Eu voltei para a casa dos meus pais com todo o tempo do mundo e, diante de uma estante cheia, me encantei aquele folhetim da maior qualidade.
O convite de Blat foi respondido com um “sim” imediato e, durante quatro meses de processo, as palavras ganharam a forma de cenas. Sem esquecer da fidelidade ao original, a história teve a contemporaneidade reforçada sem ambições limitadas a causar impacto. Duas questões são marcantes na encenação, um elenco diverso, que não apresenta distinção de gênero ou raça na escalação dos personagens, e a absoluta horizontalidade criativa em que todos contribuíram com ideias de um jeito tão natural. “Somos uma turma acostumada a trabalhar com a autoria pulverizada e é muito mais fácil assim do que eu impor a minha palavra”, diz Marina.
Desta forma, Babu Santana, um ator preto, é o Fiódor, o pai de Ivan (Blat), Dmítri (Luisa Arraes) e Aliocha (Nina Tomsic), as duas últimas que, além de brancas, interpretam personagens masculinos. Não se trata de um choque estético ou uma provocação alinhada a conceitos de modismos. “O teatro é o lugar da palavra e essa divisão de gênero ou raça não faz mais sentido algum, chega até a me incomodar”, comenta a codiretora, que defende a opção como necessária para derrubar preconceitos que a arte, inclusive, ajudou a alimentar. “Sol Miranda, por exemplo, faz a Gruchenka, e, nas cenas em que ela é humilhada e ofendida, a personagem ganha nova dimensão por ser interpretada por uma artista preta.”

Blat garante que a direção não encontrou dificuldades para aproximar a trama do espectador brasileiro. A cena de abertura mostra um coro entoando um canto religioso ortodoxo russo que, aos poucos, começa a ser tomado por uma percussão que remete às batidas de um samba. Em relação ao conteúdo, fica fácil conectar o público porque, segundo ele, muito do que é visto ali espelha a nossa realidade.
“Na época, a Rússia vivia um grande abismo social, como o Brasil de hoje, tinha uma igreja ortodoxa e controladora não muito diferente das religiões que tentam dominar as mentes brasileiras e, além disto, esse elenco diverso para tratar de patriarcado e autorismo só potencializa a mensagem”, compara. “Muita gente que vem ao teatro esperando um clássico sai bastante surpresa e comenta com a gente a admiração por ter visto um espetáculo tão contemporâneo.”
Serviço
Os Irmãos Karamázov
Teatro do Sesc Pompeia. Rua Clélia, 93, Pompeia.
Quinta a sábado, 20h; domingo, 17h. R$ 70
Até 30 de março (estreia 27 de fevereiro)