A peça, adaptada e dirigida por Jé Oliveira, promove diálogo entre escravidão e desigualdades contemporâneas
Por Dirceu Alves Jr.
Formado em 2008, o Coletivo Negro reuniu seis jovens artistas em torno de uma pesquisa cênico-racial e dramaturgias sociais e históricas brasileiras. A inspiração vinha do Teatro Experimental do Negro, grupo carioca criado em 1944 pelo ator e ativista Abdias do Nascimento (1914-2011), que tinha no elenco, entre outros, as atrizes Léa Garcia (1933-2023) e Ruth de Souza (1921-2019) e os atores Haroldo Costa e José Maria Monteiro (1923-2010).
O Coletivo Negro, nesta época, era Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jé Oliveira, Jefferson Matias e Thaís Dias, graduados pela Escola Livre de Santo André, e Raphael Garcia, da Escola de Arte Dramática (EAD), todos pretos e dispostos a cavar um lugar no mercado excludente. Hoje, Matias e Thaís não integram mais o time. “A nossa primeira peça, Movimento Número 1: O Silêncio de Depois, estreou em 2011, no Tendal da Lapa, e foi vista por poucas pessoas além dos nossos amigos”, lembra o ator, dramaturgo e diretor Jé Oliveira, de 41 anos. “Junto com a Cia. Os Crespos, abrimos a trilha no facão e é bom perceber que as coisas evoluíram na cena paulistana.”

Com a estreia de Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?, prevista para o sábado, dia 22, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, o Coletivo Negro caminha para a maioridade ocupando um dos principais palcos da cidade – o que também representa alcançar plateias heterogêneas. Trata-se de uma livre adaptação de conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis (1839-1908), com dramaturgia e direção de Oliveira, que funde teatro, música e tecnologia em um diálogo entre a herança escravocrata e as desigualdades raciais contemporâneas.
Além da atriz Aysha Nascimento e dos atores Flávio Rodrigues e Raphael Garcia, estão em cena três instrumentistas, Lua Bernardo (baixo acústico e elétrico, sopros e voz), Maurício Pazz (bandolim, violão, guitarra, cavaco e voz) e Thiago Sonho (percussão, bateria, samplers e voz).
A montagem tem como mote a sentença final do conto, publicado em 1906: “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”. No original machadiano, Candinho é um homem desesperado para garantir a sobrevivência da família. Porém, mesmo miserável, é branco e livre. Na versão teatral, o protagonista é Osvaldo (interpretado por Garcia), preto, que acaba de se tornar pai e, depois de amargar um longo desemprego, conseguiu trabalho em um supermercado.

Um dia, ele é alertado pela gerência que uma mulher, preta e grávida (papel de Aysha), circula entre os corredores, abrindo e fechando a bolsa, logo, estaria supostamente roubando mercadorias. Está estabelecida a luta pela sobrevivência entre um pai e uma mãe, duas pessoas em condições vulneráveis, nos dias de hoje. Flávio Rodrigues é o narrador, a representação de Machado de Assis no palco. “O Osvaldo não é um grande vilão, mas um homem lutando em uma sociedade capitalista para garantir o dele”, diz Oliveira. “O capitalismo e o neoliberalismo acentuaram questões da escravidão, e a miséria corroeu a solidariedade.”
A ambientação em uma rede de varejo remete ao mercado negreiro. Toda a estética da peça é pautada por câmeras de segurança que, na transferência para os dias de hoje, representam o mesmo que os anúncios publicados nos jornais mostrando os escravos fugitivos – assim como aqueles que Candinho capturava e entregava aos donos no conto de Machado. “Em última instância, se a gente pegar as instituições, como a Polícia Militar, os seus quadros são formados em grande parte por funcionários pretos e desfavorecidos”, diz o dramaturgo e diretor, observando que os Candinhos e Osvaldos seguem por toda parte. “E estes mesmos barbarizam pessoas parecidas com eles.”

Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? marca o reencontro no palco dos integrantes originais do Coletivo Negro, com exceção de Jefferson Matias e Thaís Dias. O último espetáculo que reuniu a turma fundadora foi {Entre}, dirigido por Aysha e Garcia em 2014. Desde então, os projetos do grupo continuaram sendo desenvolvidos, mesmo que comandado por cada um deles em suas buscas e empenhos individuais.
Revolver (2015), com Rodrigues e Garcia, Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos de Homens (2016), criado por Oliveira, Ida (2016), dirigido por Rodrigues e protagonizado por Aysha e Verônica Santos, e F.A.L.A. – Fragmentos Autônomos sobre Liberdades Afetivas (2018), outra encenação comandada por Rodrigues, a última do Coletivo antes da pandemia, são exemplos deste repertório baseado em investigações pessoais de cada componente.
“Todos nós precisamos individualmente fortalecer a própria poética e a vida pediu esse respiro para entender os percursos”, justifica Oliveira, que, neste período, dirigiu, fora do Coletivo, o celebrado Gota d’Água Preta (2019), versão da obra de Chico Buarque e Paulo Pontes. “A nossa volta coloca a maturidade e o aprendizado de cada um a serviço do grupo.”
Jé Oliveira ressalta a relevância de valorizar Machado de Assis como um escritor preto. Muitas vezes, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas foi acusado de absenteísmo e falta de compromisso com a temática da escravidão, além de ter sido tratado, inclusive pela mídia, como branco. Em 2011, uma publicidade da Caixa Econômica Federal gerou polêmica e revolta ao veicular Machado interpretado por um ator branco. O comercial foi retirado do ar e refeito, desta vez protagonizada por um ator preto. “A disputada pela racialidade de Machado persistiu por muito tempo e, por isso, é importante a gente fazer com que corpos parecidos com o dele representem suas palavras em cena”, completa o diretor e dramaturgo.
Serviço
Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?
Sesc Consolação – Teatro Anchieta. Rua Dr. Vila Nova, 245
Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. Sessões extras nas quintas, 3 e 10 de abril, 15h. R$ 70
Até 27 de abril (estreia 22 de março)
Programação paralela
Machado de Assis nos dias de hoje: Reverberações e Presenças
Curso com Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jé Oliveira e Raphael Garcia. 25 a 28 de março, das 13h às 17h. Local. CPT – Centro de Pesquisa Teatral. R$ 50
Debate com Rosane Borges, Adriana Ferreira e Walter Garcia. 5 de abril, 14h. Grátis. Local: Sesc Consolação – Teatro Anchieta. Grátis