O monólogo, escrito e dirigido por Carla Zanini, funde um atentado a uma escola, elementos da cultura paraense e citações à cantora Dona Onete – espetáculo chega no Sesc Ipiranga
Por Dirceu Alves Jr.
Aos 11 anos, a pequena Angela atravessava um problema familiar, a separação dos pais. Na escola, andava quieta, distante, e a professora Amélia, com a sensibilidade lapidada pelo magistério, pensou em um jeito de recuperar a atenção da aluna. Todos os dias, depois que a classe ia embora, a Tia Amélia, da escola Saci Pererê, em Belém do Pará, segurava a garota por mais um tempo e lia trechos do romance Os Miseráveis. Angela ficou fascinada e contava as horas para voltar ao colégio e ouvir novas passagens da história do francês Victor Hugo (1802-1885).
Todo mundo tem um ou mais professores marcantes que, volta e meia, reaparecem na memória. Angela Ribeiro, de 49 anos, cresceu, veio morar em São Paulo, estudou publicidade e teatro e virou atriz e dramaturga. É ela quem protagoniza Belmira, monólogo escrito e dirigido por Carla Zanini, que estreia nesta quinta, 13, no Sesc Ipiranga, e, além da Tia Amélia, outros mestres voltaram às cabeças de Angela e Carla durante os ensaios. “Queremos que o público saia do teatro lembrando o quanto a escola e os professores foram importantes na vida”, afirma a intérprete.

Só que a raiz de Belmira não vem do lado lúdico e fascinante da profissão, mas do sucateamento do ensino e da violência que atinge aqueles que se desdobram em mil diante dos estudantes em uma sala de aula. “É frequente a síndrome do pânico, as crises de ansiedade e o Burnout porque a escola, que é um lugar de construção e não de explosão, se tornou um território que exige coragem”, diz a protagonista.
No espetáculo, Angela interpreta Marta, uma professora paraense que leciona na rede pública de São Paulo. Recém-chegada à cidade, ela conheceu o carinho de uma colega, Belmira, com manteve uma relação e, juntas, se envolvem em uma antenado à escola. Como sobrevivente da violência, Marta testa os limites para lidar com uma rotina de instabilidade emocional em nome da dedicação aos alunos e da necessidade de tocar a vida adiante.
Em sua dramaturgia, Carla tem investigado as manifestações de ódio e, no ano passado, montou as peças Afeto e Raiva. São as duas partes de uma trilogia que será fechada com a inédita Coragem. Belmira cresceu como texto depois de uma provocação de Angela. As duas se conhecem há 15 anos, quando se cruzaram nos corredores da Escola de Arte Dramática (EAD), da USP. Para uma mostra de um laboratório de dramaturgia, em 2023, Carla escreveu uma cena curta, de cinco minutos, e chamou a colega para interpretá-la. A história girava em torno de uma professora que, ao sair de casa, depara com um cadáver na sua porta. “Eu já vinha com vontade há algum tempo de protagonizar um solo e achei que tínhamos um caminho”, conta Angela. “A violência está em todos os lugares e são muitos os atentados às escolas que não são divulgados até para não incentivar ações semelhantes.”

Carla ficou chocada com o assassinato da professora Elizabeth Tenreiro, de 71 anos, esfaqueada por um estudante de um colégio da zona oeste paulistana, em 2023. “Foi um ano que teve esse boom nas escolas, inclusive em Franca, minha cidade, e essa ideia da professora lidando com um corpo no chão começou ali”, declara a autora. Veio de Angela a sugestão de a personagem ser paraense até porque sua origem sempre pareceu meio nebulosas em São Paulo, e Carla gostou desse fio narrativo. “É uma peça sobre como a gente retorna às origens para seguir em frente depois de um trauma”, justifica.
Em meio às pesquisas, apareceu o passado da cantora paraense Dona Onete, de 85 anos, que, depois de se aposentar como educadora, aos 62, estreou na carreira musical. “E não é que ela começou a cantar, descobriu uma nova vida depois dos 60 anos, ela virou um acontecimento, um fenômeno”, exalta Carla. Aos poucos, esta história entra em Belmira, e o público toma conhecimento de uma professora que lecionava para as crianças da região ribeirinha e os ensinou a valorizar elementos culturais da região norte. “Dona Onete dava aulas recreativas e buscava a potencialização dos alunos a partir do lugar de onde eles vinham”, explica a autora.

Belmira é estruturada em três pilares: o atentado a uma escola pública, as referências da cultura paraense e a costura biográfica da chamada “diva do carimbó chamegado”. “Às vezes, o teatro subestima o poder de uma boa história e, juntando Marta, Belmira, Angela e Dona Onete, temos quatro grandes contadoras de histórias”, garante Carla. Angela, porém, quebra qualquer expectativa de que Belmira se relacione ao gênero da autoficção tão em voga. “Tem muita coisa ali que é real, mas não temos compromisso algum com a realidade”, avisa.
A atriz, que estava longe dos palcos adultos desde O Beijo no Asfalto, direção de Bruno Perillo para a peça de Nelson Rodrigues em 2019, chama atenção que está na hora de o teatro recuperar a poesia mesmo ao trazer à tona assuntos tão sérios. “A gente pode falar da beleza dos rios de Belém, de duas águas que correm juntas, mas não se misturam, como uma simbologia à relação de Marta e Belmira, e, claro, abordar um tema que é político”, afirma. “Queremos pegar o público pelo teatro e não pelo noticiário, levantar questões e, quem sabe, diante de uma vida tão séria, até rir um pouco também.”
Serviço
Belmira
Auditório do Sesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga.
Sexta, 21h30; sábado e domingo, 18h30. R$ 50
Até 6 de abril (estreia 13 de março)