O espetáculo, que estreia no Sesc Vila Mariana, parte da peça “Um Homem É um Homem” com motorista de aplicativo envolvido em uma guerra
Por Dirceu Alves Jr.
O tempo para o teatro tarda, mas não falha. E, muitas vezes, uma espera pode ser até para o bem. Pelo menos é o que acredita o diretor Marco Antonio Rodrigues, de 69 anos, quanto ao espetáculo Gente É Gente?!, ópera-samba com pitadas de cabaré, que estreia neste sábado, 29, no Teatro Antunes Filho, do Sesc Vila Mariana. O elenco, liderado por Ailton Graça, ainda traz Paulo Américo (stand-in de Graça), Barroso, Caio Silviano, Dagoberto Feliz, Fernando Nitsch, Joice Jane Teixeira, Katia Naiane, Nábia Villela e Rodrigo Scarpelli.
Livre adaptação da peça Um Homem É um Homem, do alemão Bertolt Brecht (1898-1956), com dramaturgia de Claudia Barral e direção musical e trilha sonora de Zeca Baleiro, o projeto começou a ser idealizado em 2021 e bateu na trave da seleção de quatro editais. Era aquele momento de pandemia, tristeza a mil e barbaridades de Jair Bolsonaro no poder. Rodrigues, Claudia, Baleiro e o produtor Luque Daltrozo não se entregaram diante das negativas. “Foi bom não ter feito na época porque ficaria muito colado ao bolsonarismo”, afirma o diretor. “Chegamos a um resultado maduro, limpando as perspectivas de denúncias, afinal, todo mundo sabe o que todo mundo sabe.”
Em Um Homem É um Homem, Brecht traz a história do estivador Galy Gay, um sujeito comum, de caráter flexível, que acaba transformado em um soldado a serviço do poder e da ideologia bélica. O protagonista de Gente É Gente?! é tão ordinário quanto, o motorista de aplicativo Gesualdo Brilhante (interpretado por Graça), que carrega uma tendência a ceder às vontades alheias e pode demonstrar um bom coração ou uma falta de firmeza nas convicções.

Um dia, Gesualdo sai para comprar mariscos e, abordado por três soldados desesperados com a falta de um colega, assume o lugar do desertor. O militar ausente, preso depois de um roubo a um terreiro de candomblé́, desencadeia eventos que obriga o protagonista a ceder em um universo de autoritarismo e violência. Gesualdo, com sua facilidade de adaptação, acaba parte de uma engrenagem em uma guerra prestes a explodir. “É o cara que não sabe dizer não e, hoje, vivemos um tempo em que não se pode dizer não”, aponta o diretor.
Brecht é Brecht, e Rodrigues, profundo conhecedor das palavras e teorias do autor, enxerga facilmente este contexto na atualidade, principalmente em relação à precarização que se tornou regra no mercado de trabalho e nas relações humanas. “Nós todos viramos Uber, nos colonizamos a nós mesmos, o que é um absurdo, porque não precisamos mais nem de ninguém para nos colonizar”, constata. “A precarização gerou um espírito mais dócil em todo mundo.”
Gente É Gente?! parte de Um Homem É um Homem, mas amplia as simbologias para além da estância brechtiana e essa representação se dá pelo carnaval. O espetáculo se desenrola entre a iminência de um conflito armado e à efervescência de um desfile marcado pelo samba, confetes e serpentinas e por uma alegria capaz de amenizar o desespero. “Por mais que o carnaval de hoje seja uma ideia mais higienizada, que não lembra tanto os de tempos atrás, tem um lado de renovação da energia das pessoas por quebrar os padrões”, explica Rodrigues.

Zeca Baleiro, mais associado às baladas e ao pop, inegavelmente é um compositor de letras narrativas, espécies de crônicas, o que tem promovido uma aproximação sua com o teatro. São dele as trilhas sonoras de A Paixão Segundo Nelson, Roque Santeiro – O Musical e a recente O Ninho, Um Recado da Raiz. Para Gente É Gente?!, Baleiro criou quinze temas originais com títulos sugestivos como Extorquir Monetizar, Bem-Vinda, Guerra e Matar é Trabalhoso.
Além da contribuição de Baleiro, Rodrigues salienta a bem-sucedida parceria com a dramaturga Claudia Barral. O primeiro encontro dos dois foi com o texto de Erêndira – A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avô Desalmada (2019), adaptada da novela de Gabriel García Márquez (1927-2014), e teve sequência com o documentário Guarani em Chamas, realizado na pandemia, que mostrou o processo criativo da montagem da ópera de Carlos Gomes (1836-1896) inviabilizada pela crise sanitária. “A Claudia é muito sensível e essa sensibilidade serve de equilíbrio para um lado meu mais duro”, elogia.
Fundador do Grupo Folias, Rodrigues trabalha há 20 anos na Escola Superior de Educação de Coimbra, em Portugal. Ele coordena a encenação do espetáculo de formatura do curso de teatro, e a função o obriga a ficar vários meses longe do Brasil. Na próxima semana, por exemplo, ele viaja e deve ficar por lá até o fim do ano. “Virei uma pessoa meio apátrida”, reconhece. “Não sei se pertenço ao povo daqui ou ao de lá.”

O distanciamento, porém, fez bem para a visão do diretor, que reconhece as vantagens de fazer arte na Europa. “Sem querer ser pessimista, as coisas pioraram muito no Brasil nos últimos anos e é não só pelas questões da direita, mas também por causa da esquerda”, reflete. “Os dois polos se aproximaram e, depois da pandemia, o Brasil ficou mais dramático para o bem e para o mal.”
Rodrigues destaca que na Europa ainda há uma cultura, uma valorização artística que faz sentido. “Existe um lugar de troca que resiste a tudo porque, depois de passarem por tantas guerras, eles devem ter percebido que a cultura fica”, declara. “A América Latina tem uma capacidade incansável de inventar coisas e esta é a nossa grande qualidade sobre eles, mas o conservadorismo europeu tem seu lado precioso, inclusive por causa do investimento público, algo que vem desde o iluminismo.”
Serviço
Gente É Gente?!
Sesc Vila Mariana – Teatro Antunes Filho. Rua Pelotas, 141, Vila Mariana
Quarta, 15h. Quinta a sábado, 21h. Domingo e feriado, 18h. R$ 70
Até 4 de maio (estreia 29 de março)