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A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

Companhia do Latão confronta realismo e fantasia de um país violento ao som do rock

Sinopse

“A Banda Épica na Noite das Gerais”, que chega ao Sesc 14 Bis, enfoca um grupo de artistas desafiado pela falência do imaginário de um país

Por Dirceu Alves Jr.

No fim de agosto do ano passado, um grupo de artistas começou a criar um projeto teatral que sequer tinha previsão de estreia ou viabilidade de financiamento. Ancorado neste esquema “amoroso”, um argumento que rondava a cabeça do dramaturgo e diretor Sérgio de Carvalho passou a ser desenvolvido em uma sala de ensaios, e improvisações tomaram forma para espelhar um dos períodos mais tensos do país no contexto da atualidade.

Em 1972, a excursão de uma banda de rock alternativo é interrompida devido aos problemas mecânicos de um ônibus no interior de Minas Gerais, próximo ao Rio Doce, região marcada por massacres desde o colonialismo. Isolados em meio à estrada, no auge da ditadura militar, os artistas se confrontam com imagens e personagens que representam um país estruturado na violência e são obrigados a conviveram com um universo tão realista quanto fantástico. “A peça olha à distância para estes artistas, mas, a certa altura, tudo se embaralha e já não se sabe mais se a ação ocorre em 1972 ou temos uma cópia do futuro olhando para aquele período”, explica Carvalho.  

Parte do elenco de A Banda Épica na Noite das Gerais. Foto Miriam Silva

O espetáculo A Banda Épica na Noite das Gerais, da Companhia do Latão estreia nesta sexta, 14, no Teatro Raul Cortez do Sesc 14 Bis e, até o último momento, o diretor e dramaturgo trabalha no texto e na afinação das cenas junto ao numeroso elenco. “É um processo difícil, porque só no palco temos catorze artistas, e a peça assumiu uma estrutura onírica, veio do imaginário e da memória de cada uma das pessoas, como nos filmes de David Lynch (1946-2025) ou Federico Fellini (1920-1993)”, declara. 

A coletividade é uma das filosofias do grupo, que, desde a fundação, em 1997, propõe um teatro político de base e não apenas representado nas mensagens das peças. “Se nós éramos diferentes da despolitização que dominou os palcos brasileiros depois da abertura, agora, a gente continua na contradição porque ninguém está aqui para lacrar ou ensinar alguma coisa ao público”, define Carvalho. “No Latão, sempre nos colocamos no mesmo nível da plateia, e a política vem como prática e não ideologia.”

Outros atores de A Banda Épica na Noite das Gerais, da Companhia do Latão. Foto Miriam Silva

A ausência de uma hierarquia entre os componentes e a busca por uma igualdade na execução das tarefas, sem superestimar a intelectualização, guiam o repertório do Latão há 28 anos. Montagens, como A Comédia do Trabalho (2000), O Círculo de Giz Caucasiano (2006), Ópera dos Vivos (2011) e O Patrão Cordial (2013), reforçaram a premissa, e a fusão de linguagens representadas, por exemplo, pela música ou pelas projeções audiovisuais, buscam uma ampliação do diálogo com os espectadores. “No fundo, o Latão se preocupa em fazer espetáculos que sejam divertidos”, diz o diretor.  

A trilha sonora figura como elemento constante das montagens da companhia, mas fazia tempo que o desejo de desenvolver uma pesquisa que colocasse a música como estrutura da narrativa se fazia presente. Chegou a hora. Os diretores musicais Felipe Botelho e Nina Hotimsky compuseram durante o processo canções originais, e a montagem ainda traz referência a sucessos populares, a exemplo de Mundo Cão, de Erasmo Carlos, Eu Vou Tirar Você Desse Lugar, de Odair José, e Datemi un Martello, da italiana Rita Pavone.

Em A Banda Épica na Noite das Gerais, como sugere o diretor, existe o som da banda, o som dos personagens e a voz do espetáculo, que, claro, apesar da execução das canções ao vivo, apoiadas por baixo, guitarras, teclado, violão, bateria e acordeão, não pode ser definido com um musical tradicional. “É a primeira vez que temos uma bateria no palco, não só uma percussão ou uma base gravada”, afirma Carvalho. “É uma demonstração de que, neste espetáculo, assumimos um mundo pop rock e procuramos uma sonoridade estranha.” 

Os atores de A Banda Épica na Noite das Gerais, da Companhia do Latão. Foto Miriam Silva

O elenco reúne nomes de diferentes gerações e formações que ampliam a diversidade da proposta coletiva. A tal banda da peça é formada por, entre outros, Bê Cruz, Beatriz Bittencourt e Caio Horowicz, além de Botelho e Nina Hotimsky. O ator Leonardo Ventura, conhecido pela experiência no CPT do diretor Antunes Filho, interpreta o produtor que precisa resolver os entraves da interrupção da turnê. Componentes do núcleo duro do Latão, como o ator Ney Piacentini e a atriz Helena Albergaria, representam respectivamente um fazendeiro e uma caminhoneira. 

Na dramaturgia, o ano de 1972 se torna símbolo da falência democrática do país. A repressão militar vive o auge, a luta armada é dizimada e começa o fim de um ciclo de esperança que seria sepultado com o golpe que colocou o Chile entre as ditaduras latino-americanas no ano seguinte. A escolha de Minas Gerais como cenário se justifica, segundo o diretor, por ser um marco simbólico do horror brasileiro. É um estado que vive no centro das disputas políticas e tem uma distribuição de renda bastante desigual. 

“Os artistas da banda estão longe de ser alienados, mas, naquele território, percebem que os problemas do Brasil são muito maiores que os deles”, afirma Carvalho. “Estes personagens representam um autoexame da nossa própria consciência como artistas já que estamos fadados ao que sobrou de um imaginário nacional.”

A Banda Épica na Noite das Gerais é o primeiro espetáculo formal do Latão depois da pandemia e diversos temas devem estar entalados na garganta criativa dos realizadores. Por isso, pode ser que ganhe a cena um manifesto em relação aos últimos anos de um país que enfrentou o bolsonarismo, a ameaça aos regimes democráticos e a diluição de uma postura de esquerda. “Não é à toa que o filme mais importante da atualidade, Ainda Estou Aqui, olha para a memória da nossa história e a gente se vê diante de um fascismo renovado recentemente”, diz Carvalho. “A peça é uma espécie de crítica ao imaginário de que só nos resta sobreviver porque, assim, reforçamos o medo e a não-participação.”     

Serviço

A Banda Épica na Noite das Gerais.

Sesc 14 Bis – Teatro Raul Cortez. Rua Dr. Plinio Barreto, 285, Bela Vista.

Quinta a sábado, 20h e domingo, 18h. R$ 70.

Até 16 de março. Não haverá sessão em 2 de março (estreia 14 de fevereiro)

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Ficha Técnica

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Serviço

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