Com direção de Ulysses Cruz, o ator Sergio Guizé é o protagonista do espetáculo, que mostra um chefe de Estado incapaz de se reconhecer na própria cópia que mandou fazer
Por Dirceu Alves Jr.
Em uma fase de intensa produção, o dramaturgo Samir Yazbek lança o quarto texto em menos de um ano. O Outro Borges, inspirado na vida e na obra do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), ganhou o palco em novembro passado. Em março, foi a vez de Corpo Intruso, um surpreendente suspense, e, no mês passado, Yazbek estreou Por Trás das Flores, drama sobre uma relação de mãe e filha, que volta ao cartaz no dia 29 no Teatro Multiplan MorumbiShopping.
A novidade da vez é Perfeita!, que, nesta quinta, 24, dá a largada para uma temporada no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros. Incursão inédita do autor no terreno da ficção científica, o espetáculo, dirigido por Ulysses Cruz, é uma distopia sobre o poder ambientada em um futuro nem tão distante.
Comandante (interpretado por Sergio Guizé) é um autoritário chefe de Estado desafiado pelas crescentes reivindicações da população. Para enfrentar os opositores, ele encomenda a um cientista (papel de Gustavo Machado) o desenvolvimento de uma cópia fiel de si mesmo. Só que o Comandante não se identifica com o resultado e mergulha em uma crise capaz de afetar até o relacionamento com sua mulher (vivida pela atriz Sol Menezzes).

“Creio que Perfeita! seja a minha peça mais política, uma nova fase da minha dramaturgia, no sentido de expor como os fatos se dão em regimes autoritários e em outros em que os desmandos podem ser sutis, mas não menos perniciosos para a sociedade”, define o autor. “É um texto que pode nos ajudar a entender o mundo em que vivemos e propiciar uma reflexão sobre como podemos efetivamente transformá-lo.”
Perfeita! nasceu de um estímulo do produtor Fernando Padilha, amigo de Yazbek há duas décadas, que encomendou durante a pandemia um texto diferente de tudo o que ele já havia escrito. Desafiado, o dramaturgo pensou em olhar para o futuro ao contrário de revisitar o passado, característica recorrente dos seus textos. Em dois de seus trabalhos mais conhecidos, O Fingidor (1999) e A Terra Prometida (2001), por exemplo, ele voltava no tempo, seja através da figura do poeta Fernando Pessoa ou de personagens bíblicos, para tratar de questões oportunas ao presente.

A ideia de convidar Ulysses Cruz para assinar a encenação também partiu de Padilha. “Assim que terminei a leitura, eu pensei que o Ulysses seria o único diretor capaz de potencializar ainda mais a proposta tão arrojada do Samir”, conta o produtor.
A admiração mútua atravessa décadas, mas esta é a primeira vez que Yazbek e Cruz trabalham juntos. Aliás, a formação dos dois passa pela mesma influência, a do diretor Antunes Filho (1929-2019) no CPT (Centro de Pesquisa Teatral). Em 1982, Cruz acompanhou o nascimento do CPT nas dependências do Sesc Consolação e, por três anos, bebeu na fonte do mestre para solidificar sua emergente história.
Com a espetáculo Velhos Marinheiros, inspirado na obra de Jorge Amado (1912-2001) e produzido no CPT, o jovem encenador conheceu a repercussão e, no comando do grupo Boi Voador, caminhou com as próprias pernas em montagens marcantes como O Despertar da Primavera (1986), Corpo de Baile (1988) e Pantaleão e as Visitadoras (1990). Depois disso, ele viraria um encenador disputado por astros como Antonio Fagundes (Fragmentos de um Discurso Amoroso e Macbeth), Renata Sorrah (Encontrar-se), Paulo Autran (Rei Lear) e Tarcísio Meira (O Camareiro).

Em 1990, Yazbek assistiu a uma palestra de Antunes no Centro Cultural São Paulo e ficou impressionado com a valorização que o diretor dava aos textos. Já aspirante a dramaturgo, ele puxou um papo com o encenador e ouviu uma inesperada resposta: “Passa lá no CPT amanhã”. Yazbek aceitou o convite, foi ao CPT e permaneceu lá dentro como dramaturgo-assistente por oito anos. “O CPT vivia uma fase de transição, o Luis Alberto de Abreu tinha saído, talvez por isso tenha se consolidado a aproximação entre o Antunes e eu”, recorda. “Ele pregava que o autor deveria ser livre, longe dos moldes canônicos e sempre penso em uma provocação que ele me fazia perguntando se eu já tinha rasgado o que escrevi ontem, porque só assim o texto ficaria bom.”
Yazbek conheceu o poder das encenações de Cruz ao acompanhar um ensaio aberto de Corpo de Baile (1988). Ele assistiu a algumas cenas da montagem em processo no Colégio Caetano de Campos e voltou para casa com a cabeça fervilhando por causa das imagens extraídas da prosa original de Guimarães Rosa. “Passei a assistir a tudo o que o Ulysses fazia porque sabia que encontraria uma visão original de encenação e um grande cuidado com as interpretações”, diz o dramaturgo. “Mas o nosso primeiro contato pessoal foi só no começo dos anos 2000, quando o Ulysses assistiu a uma sessão de O Fingidor no Rio de Janeiro, e, mesmo assim, não passou de uma conversa rápida entre duas pessoas ligadas ao teatro.”

Cruz se lembra desse dia, confessa que ficou muito impactado com a dramaturgia engenhosa de O Fingidor e chegou a rever a montagem outras duas vezes. “Naquela época, trabalhava bastante em Portugal e estava envolvido com Fernando Pessoa, então aquilo me pegou”, conta. A amizade, entretanto, só se faz quando os dois começaram os encontros para a preparação de Perfeita!.
O diretor confessa que já atravessou relações bastante turbulentas com os autores com quem trabalhou, mas, desta vez, a parceria funcionou tanto que Cruz estreia Perfeita! cheio de novas ideias para desenvolver junto de Yazbek. “Na minha visão, o diretor é um parceiro do dramaturgo e assume uma segunda autoria porque tem o papel de detonar novas leituras sobre a obra”, afirma. “O Samir sabe ouvir, sabe trocar, algo bastante raro, e posso garantir que tivemos um encontro maravilhoso.”
Para Yazbek, o interesse do celebrado encenador pelo seu texto ficou evidente desde as primeiras leituras, mas Cruz não deixou de fazer uma série de considerações que foram aproveitadas e beneficiaram o resultado da dramaturgia. “Percebia que naqueles comentários o Ulysses já construía o espetáculo na cabeça dele e, como sempre soube de seu rigor artístico, confiei nas intuições”, diz. “O título nasceu de uma conversa nossa e contém uma ironia em relação ao que a cópia representa para o original, porque a cópia começa a ganhar autonomia enquanto Legatus só queria uma representação narcísica.”
Às vésperas da estreia, o encenador parece bastante satisfeito com o que deve ser visto no palco. “Só que teatro é aquilo, você só sabe se tem alguma coisa quando o público ocupa seu lugar na plateia e completa o jogo”, declara. A relevância do discurso proposto por Yazbek é sublinhada por Cruz. “Nós vivemos uma época em que as pessoas são incógnitas absolutas e todo mundo tem medo de se mostrar”, observa. “Esta cópia gera no protagonista um desconforto e propicia o início de uma jornada de entendimento que obriga Legatus a se enxergar e perceber que não gosta de si mesmo daquele jeito.”
Serviço
Perfeita!
Teatro Paulo Autran – Sesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195, Pinheiros.
Quinta a sábado, 21h; domingo e feriado, 18h. R$ 70.
Até 24 de novembro (estreia 24 de outubro)