Ed Moraes protagoniza solo escrito e dirigido por Michelle Ferreira sobre o político gay Harvey Milk em temporada gratuita no Centro Cultural São Paulo
Por Dirceu Alves Jr.
Em uma madrugada de 2013, nos arredores da Avenida Paulista, o ator e produtor paulistano Ed Moraes, hoje com 41 anos, sofreu um assalto de consequências graves por quem poderia apenas levar um celular ou uma carteira sem maiores resistências da vítima. Uma agressão física rendeu ao artista uma hospitalização e indícios de traumatismo craniano. “Percebi que tinha sido alvo de homofobia e me vi nesse lugar de sofrimento que atinge tanta gente no Brasil”, conta Moraes. “Decidi olhar para dentro de mim e tratar no palco de questões importantes para a sociedade LGBTQIAP+.”
A violência vivida naquela noite foi o gatilho para Moraes entender que, para crescer como artista, precisava colocar o homem LGBTQIAP+ no centro de seu próximo projeto. Com texto e direção de Michelle Ferreira, o monólogo Eu Não Sou Harvey – O Desafio das Cabeças Trocadas, que reestreia nesta quinta, 15, na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo, busca inspiração na figura do ativista norte-americano Harvey Milk (1930-1978), o primeiro político assumidamente gay dos Estados Unidos, que foi assassinado por um opositor, Dan White (1946-1985), em um típico caso de homofobia.
Michelle Ferreira, porém, descartou a biografia clássica e construiu um jogo sobre um ator que, desafiado a interpretar Milk, traça paralelos entre a história brasileira desde o período colonial e a intolerância que culminou na morte do político norte-americano. Em cena, Ed Moraes, por vezes, é Milk, mas também, além do ator, pode representar qualquer homem LGBTQIAP+ que convive com ameaças permanentes em virtude da orientação sexual. “Por isso é tão importante levar esse discurso sobre diversidade e direitos humanos em uma temporada gratuita a um grande número de espectadores”, diz. “Esta é a democratização do teatro que eu acredito como artista e ativista.”
A volta ao cartaz de Eu Não Sou Harvey – O Desafio das Cabeças Trocadas não se trata apenas da retomada de um espetáculo. Quando pisar no palco, Ed Moraes reafirma a sua persistência para manter vivo um projeto que lhe custou cinco anos de pesquisa e, quando ganhou a cena, em fevereiro de 2020, no Auditório do Sesc Pinheiros, teve a carreira abortada pela pandemia da Covid-19 no mês seguinte. “De repente, a expectativa de me comunicar com o maior número de pessoas possível foi por água abaixo”, relembra o ator, que já tinha datas agendadas para abril no Teatro Sérgio Cardoso. “Cheguei a fazer lives com o celular na mão porque não me conformava que um trabalho desses morreria daquele jeito.”
Em busca do tempo perdido, Moraes dá um fim a sua frustração e faz as malas para, assim que terminar as três semanas no Centro Cultural São Paulo, estrear no Teatro Municipal Café Pequeno, no Rio de Janeiro, uma temporada entre 8 e 31 de março. Como tudo, mesmo que não pareça, acontece na hora certa, o ano de 2024 marca as duas décadas de carreira do artista, um jovem nascido e criado em São Mateus, bairro do extremo da zona leste paulistana, que desafiou as condições de vida sacrificada da família para viver de teatro. “Sou um dos raros atores da minha geração que não possui formação acadêmica e tudo o que aprendi foi na prática”, conta.
O começo da profissionalização se deu na Cia. de Teatro Fábrica São Paulo e, na sequência, Moraes passou pelo CPT (Centro de Pesquisa Teatral), de Antunes Filho, e pelo Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa. Foi o suficiente para entender que aquele modelo tradicional de grupo teatral, estruturado em grandes equipes e guiado por uma só voz, não combinava com os novos tempos.
Em 2009, ele fundou a Cia. dos Inquietos com o objetivo de reunir colaboradores flutuantes e apostar em dramaturgos ascendentes. Antes de Eu Não Sou Harvey – O Desafio das Cabeças Trocadas, a Cia, dos Inquietos montou Limpe Todo o Sangue Antes que Manche o Carpete, tragicomédia de Jô Bilac dirigida por Eric Lenate em 2011, e, no ano seguinte, Um Verão Familiar, drama de João Fábio Cabral novamente comandado por Lenate, que rendeu o Prêmio Shell à atriz Lavínia Pannunzio.
As duas décadas de estrada também coincidem com um momento em que o artista encontrou maior projeção na mídia. Moraes, que tem no currículo as séries Condomínio Jaqueline, da Fox, e Bugados, do Gloob, pode ser visto desde o fim de 2023 em Notícias Populares, produção do Canal Brasil, e Betinho – No Fio da Navalha, do Globoplay. Nesta última série, que mostra a história de Herbert de Sousa (papel de Júlio Andrade), Moraes interpreta outra figura emblemática da luta pelos direitos humanos, o sociólogo Herbert Daniel (1946-1992). “É um personagem que nunca deve ser esquecido porque se o Brasil teve acessos aos remédios que combatem o HIV foi por causa da batalha empreendida por ele”, declara.
Satisfeito com os resultados destes trabalhos no audiovisual, Moraes promove um mea-culpa que expande para toda a sua geração de atores, aquela que se direcionou exclusivamente aos palcos e desprezou por muitos anos as possibilidades oferecidas pela televisão. “Colocaram na nossa cabeça que televisão era algo sem importância e eu nunca sequer fui atrás de fazer um teste para participar de novelas”, revela. “Estou em um momento de me expandir cada vez mais e reconheço que posso fazer um grande papel na televisão e, inclusive, levar um novo público ao teatro.”
Serviço
Eu Não Sou Harvey – O Desafio das Cabeças Trocadas.
Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho. Rua Vergueiro, 1000, Paraíso.
Quinta a sábado, 20h; domingo, 19h. Grátis. Ingressos distribuídos uma hora antes.
Até 3 de março. A partir de quinta (15).