As veteranas intérpretes atuam na peça de Breno Rosa Gomes que, dirigida por Eliana Monteiro, estreia no Itaú Cultural
Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 3 de julho de 2025)
Duas atrizes da vida real se transformam em atrizes da ficção e, no jogo cênico de mentiras e verdades, representam irmãs afastadas por uma teia de hipocrisias que sustenta há séculos uma parcela do Brasil. As artistas de carne e osso são Cleide Queiroz, de 84 anos, e Dirce Thomaz, de 73, protagonistas do espetáculo Açúcar ou As Irmãs Anne, dramaturgia de Breno Rosa Gomes que, sob a direção de Eliana Monteiro, estreia nesta quinta, 3, no Itaú Cultural. Beatriz Nauali completa o elenco como uma narradora performativa.
Em meio à metalinguagem, as atrizes da ficção, companheiras de palco rompidas há quatro décadas, voltam ao teatro para reviver as Irmãs Anne, as personagens mais marcantes de suas carreiras, representantes de uma burguesia decadente.
“São personagens que qualquer atriz branca poderia interpretar e acho importante o Breno e a Eliana bancarem a nossa escalação para a peça”, comenta Dirce. Cleide endossa a opinião da colega: “Até porque se fosse para ser literal e de acordo com o que o público se acostumou, as irmãs Anne, como mulheres da elite, seriam naturalmente representadas por duas brancas”.

Saltando da narrativa de Açúcar ou As Irmãs Anne para a realidade, Cleide e Dirce sabem bem o que falam e, há mais de cinco décadas, destrincham uma trilha marcada por preconceitos. A própria vida das duas renderia uma surpreendente dramaturgia biográfica.
Cleide Queiroz nasceu em Santos, em meio às tensões da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). “Para muitos, pode parecer que tudo aquilo foi distante, mas nós, por causa da proximidade do porto, fomos criados sentindo o cheiro de pólvora”, comenta. Aos 14 anos, ela começou a fazer teatro amador e gostou daquilo que seus pais consideram uma brincadeira sem futuro. “Na primeira peça, Maria Vai com as Outras, eu fazia, claro, uma empregada doméstica”, lembra a artista que, formada em secretariado, foi trabalhar na Santa Casa de Misericórdia e sossegou a família.
Vivendo em São Paulo, Cleide se profissionalizou em 1969 em meio ao elenco do espetáculo Morte e Vida Severina, dirigido por Silnei Siqueira (1934-2013) para a companhia do ator Paulo Autran (1922-2007). “Na época, todo mundo só falava da EAD, a Escola de Arte Dramática, e entendi que, para ter vez no mercado, precisaria aprender, além de representar, a cantar e dançar”, lembra.
As oportunidades apareceram, mas não exatamente como Cleide imaginava. Por oito anos consecutivos, trabalhou nos espetáculos produzidos pelo Teatro Popular do Sesi, a exemplo de Noel Rosa: Poeta da Vila e Seus Amores (1977) e Chiquinha Gonzaga, Ó Abre Alas (1983), de Edinha Diniz e Maria Adelaide Amaral, sempre no coro ou corpo de baile. “Era o lugar reservado para os pretos”, lamenta.

O primeiro grande papel só chegou às suas mãos em 2000, à beira dos 60 anos, no musical Gota D’Água, dirigido por Gabriel Villela, com base na obra de Chico Buarque e Paulo Pontes (1940-1976). “Para fazer a Joana, decorei mais de 4.000 versos, a Bibi Ferreira (intérprete original da personagem, em 1975) me parabenizou e recebi indicação ao Prêmio Shell.”
Depois de Gota D’Água, para Cleide, foi como se ela passasse a ser vista com outros olhos, porém, na verdade, a sua segurança ganhou espaço para encarar trabalhos desafiadores. Da leva mais recente, a atriz ressalta o monólogo Palavra de Stela, escrito e dirigido por Elias Andreato em 2017, sobre a poeta Stela do Patrocínio (1941-1997), que sofreu de esquizofrenia e virou símbolo da luta antimanicomial. “Eu resisti muito até aceitar o papel porque tive uma mãe esquizofrênica e poderia ser dolorido levar o tema ao palco”, declara. “Só que o Elias conduziu tudo com tanta delicadeza que só tenho gratidão.”
Mãos Trêmulas, texto de Victor Nóvoa dirigido por Yara de Novaes em 2023, é outro orgulho recente. Na peça, ela contracenou com o ator Plínio Soares na história de amor vivida por dois idosos apagados da sociedade. “Eu adoro mexer com a cabeça das pessoas e, nesta peça, a Yara foi ousada de nos colocar em cena pelados, com as pelancas à mostra”, afirma. “A nossa nudez queria dizer que existe beleza em qualquer idade quando se acredita no amor.”
Dirce Thomaz aplaudiu Cleide em diversos espetáculos, e as duas chegaram a ter uma estreita convivência por causa de amigos comuns, como a atriz Lizette Negreiros (1940-2022) e ator e figurinista José Rosa. Trabalham juntas, entretanto, pela primeira vez em Açúcar ou As Irmãs Anne. “Nunca foi fácil ter personagens na mesma peça para duas pretas como nós!”, reforça Cleide.

Nascida em Santa Mariana, interior do Paraná, Dirce gosta de falar que cresceu na roça e foi por lá que tomou gosto de contar histórias, nem que fosse diante dos seus oito irmãos. Para a escola, ela só foi aos 14 anos e, aos 18, morando em Curitiba, começou a fazer trabalhos de modelo, para, logo em seguida, descobrir o teatro amador.
“Nada ia para frente, minhas amigas arrumavam bons empregos e eu não, então, em 1981, vim tentar a sorte em São Paulo”, conta. “Trabalhei aqui e ali, participei dos grupos de teatro do Banespa e do Engenho de Arte Atrás do Sol, na USP, mas vi que minhas contas seriam pagas mesmo como caixa de supermercado”, recorda.
Dirce andava desanimada, contando as cédulas recebidas na máquina registradora, quando uma amiga avisou que o diretor Antunes Filho (1929-2019) abriria testes para a montagem de Xica da Silva. “Tinha gente que me disse para não chegar perto do Antunes, que ele jogava cadeira e batia nos atores, então fechei os ouvidos e fiz a inscrição para o Centro de Pesquisa Teatral”, comenta.
Em 1986, Dirce entrou para o CPT, leu livros que nem imaginava existir, teve aulas de canto, corpo e voz e, dois anos depois, recebeu aplausos e elogios como a protagonista de Xica da Silva no Teatro Anchieta. Como faz questão de frisar, jamais foi humilhada pelo diretor. “Não é porque você admira uma pessoa que vai se tornar subserviente a ela, mas o Antunes foi a grande transformação da minha vida”, reconhece. “A mídia só fala no filme da Zezé Motta e na novela da Taís Araújo, só que no teatro a Xica da Silva fui eu!”

Até chegar ao espetáculo Açúcar ou As Irmãs Anne, as vidas de Cleide e Dirce deram muitas voltas. Dirce enveredou pela dramaturgia, escreveu a primeira peça, Os Sinos Dobram por Ela, em 1994 e, depois de conhecer a ativista norte-americana Angela Davis na 1ª Jornada Cultural Lélia Gonzales, no Maranhão, em 1997, decidiu estudar letras na PUC. “Nunca dei bola para faculdade, mas, quando vi aquelas negras maravilhosas palestrando em inglês e francês, achei que poderia encontrar um lugar na vida acadêmica”, declara.
Em 2017, Dirce voltou a brilhar no teatro com o monólogo Eu e Ela: Visita a Carolina Maria de Jesus, baseado nas memórias da autora do livro Quarto de Despejo, que volta ao cartaz nos dias 15 e 16 na Galeria Olido. Enquanto isso, a atriz finaliza a revisão da sua dissertação de mestrado, intitulada de Teatro Negro: Personagens Femininas na Dramaturgia, que defenderá na USP em setembro. “Eu e a Cleide só podemos ficar felizes de chegar a esta altura da vida em meio a tanta atividade e interpretando bons personagens depois de amargar tanto preconceito”, salienta Dirce.
Cleide, comovida, completa a opinião da colega. “Somos de um tempo em que a gente fazia testes para filmes, para publicidade e só ouvia ‘não’ sem qualquer justificativa e, agora, fico feliz de ver os artistas negros nas novelas e nos comerciais de televisão”, diz. “Não sou do tipo que sonha ou se ilude, porém vivi para ver a evolução na arte.”
Serviço
Açúcar ou As Irmãs Anne.
Itaú Cultural. Avenida Paulista, 149.
Quinta a sábado, 20h, domingo e feriado, 19h. Grátis. Os ingressos devem ser reservados no site www.itaucultural.org.br.
Até 27 de julho (estreia em 3 de julho)