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Conheça as duas peças infantojuvenis que inspiraram versão em livro com sua prosa poética

“Noite de Brinquedo’”, de Antonia Mattos e Gabriela Romeu, e “Valentim Valentinho”, de Fran Ferraretto, são os espetáculos que nasceram no palco e depois se transformaram em literatura

Por Dib Carneiro Neto

O que seria do teatro para crianças se não fosse a literatura infantil? Já escrevi essa frase várias vezes e continuo reforçando a mesma ideia. Os livros alimentam os dramaturgos. Há incontáveis e memoráveis espetáculos infantis da categoria “texto adaptado”. Mas e o contrário? Duas peças infantojuvenis em cartaz em São Paulo viraram livros depois que estrearam nos palcos.

E esses livros não são meramente os diálogos da peça, ou seja, não foram editados em forma de literatura dramatúrgica, e sim narrativa, épica. Seus autores acrescentaram detalhes, aumentaram as histórias, rechearam os diálogos com descrições e prosa poética. Ou seja, é o processo inverso. Não são livros com os textos falados no palco, são livros inspirados por essas peças.

Um desses livros é Noite de Brinquedo, de Antonia Mattos e Gabriela Romeu, com ilustrações de Luci Sacoleira, pela editora Peirópolis. A peça é Noite de Brinquedo No Terreiro de Yayá, atualmente em cartaz no Teatro Cacilda Becker, na Lapa paulistana. O texto desse livro é uma prosa poética de primeira categoria, narrado por uma idosa contadora de causos, uma ”velha que vive de caçar semente e lembrança por entre os tocos de pau”.

Cena de Noite de Brinquedo no Terreiro de Yayá. Foto Caca Bernardes

Ela começa explicando o fluxo de sua memória: “Quando meus pensamentos não se embaralham nas ervas dos canteiros, eu lembro tudinho no desfiar das contas do rosário.” E, assim, ela conta/narra muitas histórias, muitas delas que ficaram de fora do espetáculo. A narradora faz o convite: “Puxe seu tamborete, chegue mais perto e, se puder, não duvide nada do que vou contar”.  

Muitas histórias e personagens estão só no livro, não na peça

“É muito importante esse trânsito da literatura teatral para a literatura infantil, porque esses dois universos criativos se alimentam entre si e o nosso projeto pode transbordar em outras frentes”, comenta Antonia Mattos, que assina a direção da peça e faz parte da companhia Clã do Jabuti, que completa 12 anos de trajetória.

“A trama revisitada em literatura consegue abraçar coisas que a cena talvez não tenha conseguido. A primeira abordagem que a gente fez dessa dramaturgia já convocava aspectos de literatura, porque era tudo muito grande nessa pesquisa. O trabalho precisava dessa magnitude, para dar conta de todos os aspectos que descobrimos em nossa pesquisa. Foi uma pesquisa muito profunda, que envolveu muitos mestres e criadores. Muitas histórias e personagens, por exemplo, estão só no livro, não na peça. Ou seja, o livro é uma extensão e também outra possiblidade de experiência. Isso é poderoso. O imaginário da criança e de todos os que a rodeiam se expande nessa relação entre teatro e literatura. É o pensamento sobre as infâncias ganhando em profundidade. O livro traz outra intensidade, alçamos um voo maior a partir dele. Ou seja, foi tudo acontecendo como uma confluência de rio, dois universos de expressão artística se alimentando o tempo todo um do outro. A oralidade, por exemplo,  foi um aspecto que contribuiu muito para fazer dar certo esse amálgama de dramaturgia e literatura”, completa.

Não é um livro de teatro, é uma prosa que dialoga com a peça

Sua parceira no livro e na peça, a jornalista Gabriela Romeu, especializada em infâncias e estreando como dramaturga, complementa o mesmo raciocínio: “Textos de gênero dramático selam outro contrato com o leitor, porque há uma produção muito rica e frutífera de espetáculos para crianças. Muitas vezes, depois das temporadas, os espetáculos acabam mesmo. O livro é a oportunidade de que se perpetuem. Noite de Brinquedo, o livro, não é teatro, é um livro que dialoga com o teatro, já que existe também a peça. É uma prosa, é gênero épico, que nasceu de nossa pesquisa com o gênero dramático. Foi uma pesquisa tão profunda e caudalosa que tornou possível ser escrita nesses dois gêneros, nessas duas linguagens”.

Rito de passagem e ancestralidade são temas cada vez mais frequentes em peças para crianças – e ainda bem! Ambos estão presentes no trabalho de Antonia e Gabriela. “Em Noite de Brinquedo, a ancestralidade – tema tão presente em todos os nossos trabalhos anteriores – surge com a força de uma grande reverência, uma louvação às nossas avós”, diz Antonia Mattos.

“Eu tinha esse desejo de me voltar para as tradições de minha família e do lugar de onde eu vim. Ao juntar essa minha vontade com a dos outros criadores, sobretudo a Gabriela Romeu, esse trabalho ganhou a dimensão de falar de uma menina rainha que vai se tornar mestra. É uma trama ligada à nossa gente, nossos antepassados, nossos folguedos. Aí entra o rito de passagem. Um rito que não está mais na vida das grandes cidades, os grandes centros. Não ritualizam mais essa passagem da infância para a adolescência. Evocamos, assim, a ancestralidade do reisado. Vamos em busca das brincadeiras e falas já quase esquecidas. Todos os personagens chegam carregados de aspectos dos nossos ancestrais. Esse é o teatro em que a gente acredita e que pratica. Um teatro voltado para as histórias de nosso chão. Uma maneira de contribuir para a descolonização do pensamento e do imaginário veiculados no teatro para crianças”, continua.

Crianças conhecem uma rainha diferente: uma menina negra

Gabriela Romeu garante que o que essa história traz de diferente é o que ela traz de real, de verdadeiro, sobre as crianças de uma região do Brasil, que de fato passam por uma ritualização no fim da infância, durante o folguedo do reisado. “Elas são rainhas e quando crescem precisam entregar a coroa. As meninas de lá do Ceará vivem isso com muita intensidade. No teatro, em que o público mirim conhece basicamente apenas as princesas eurocêntricas, mostrar uma menina negra nesse contexto de rainha é muito importante.”

Ela descreve outras curiosidades do livro e seus processos: “Houve uma organicidade no trabalho. Ouvimos muitos mestres do Cariri cearense. O texto nasceu da cartografia. Foi feito um mapa dessa história que queríamos contar, um mapa do percurso, da jornada da personagem. A partir do mapa, muitos caminhos foram apontados para a dramaturgia. A primeira versão ficou muito extensa, nem caberia na forma de peça. Fizemos como peça-filme, na época do isolamento rigoroso da pandemia, e tivemos de dividir em três episódios. Foi um aprendizado delicioso ir descobrindo o que ficaria na peça e o que viraria livro depois”. 

Antonia Mattos e Gabriela Romeu contam um pouco sobre o sucesso da peça nas temporadas que já fez. “Foram experiências muito poderosas”, começa Antonia. “No Sesc Bom Retiro, vimos o espetáculo encontrando o público pela primeira vez. Depois, no Belenzinho, foi marcante por ser uma temporada mais longa – e encontramos na plateia muitas meninas Marias, como a da peça. Foi lindo demais. Foi como vivenciar o próprio rito da peça com o público. Como diretora, fiquei orgulhosa de ver que conseguimos essa interação. Outra alegria foi participar do Projeto Curumim, pois na plateia só havia crianças. Ficamos todos muito emocionados. No Sesc Interlagos, a resposta do público também foi bem imediata.”

E Gabriela Romeu arremata: “Foi lindo ver como o espetáculo se relaciona com as crianças e em diferentes camadas. Quando entra a sereia, por exemplo, as crianças suspiram. E elas vibram com a jornada da protagonista Maria, torcem por ela. Os adultos choram no final, muitas vezes. Em especial, é maravilhoso ver a conexão das meninas negras com a personagem, como elas se sentem retratadas e conectadas”.

‘Valentinho’: troca com plateia ajuda na transposição para livro 

O segundo livro que sai do forno inspirado em peça teatral é Valentim Valentinho, de Fran Ferraretto, encerrando temporada no Sesc Interlagos e prestes a iniciar outra, no Teatro Sérgio Cardoso. A jovem autora também partiu dos diálogos da peça, mas criou um livro diferente, mais recheado de detalhes e de descrições. Quem lança é a Editora Patuá, com ilustrações de Luan Oliveira e Luis Paulo Luciano.

Cena do espetáculo Valentim Valentinho. Foto Luis Paulo Luciano

“Geralmente vemos mais livros sendo adaptados para peças de teatro, filmes, séries, etc.”, diz Fran. “Quando acontece o contrário, como foi com o Valentim Valentinho, entendemos um pouco mais a força de um espetáculo. A potência de uma ideia que surgiu no encontro cara a cara com o público preenche de mais possibilidades uma obra que já nasceu na troca, e permanece viva.”

Do que falam livro e peça? “Para mim, Valentim Valentinho fala sobre fazermos as pazes com nossos maiores medos”, declara a autora. “Não sufocar esse sentimento tão natural, o medo, é importante para nossa formação.” Fran lembra também que há um aspecto na trama ligado à questão do machismo. Ela explica: “Em nossa sociedade, lidamos de forma muito diferente com o medo na infância, se ele vier de um menino ou de uma menina. Quase incentivamos o medo nelas, e recalcamos neles, como se meninos não pudessem ter medo, meninas sim. Isso, para mim, é uma das sementes de tudo o que temos de mais tóxico nas relações adultas. Vem tudo de lá, na infância, ou negado ou instigado. Achei que havia nisso um bom pontapé para mais uma história que se comunicaria tanto com os pais quanto com os filhos”.

É o primeiro livro de Fran: “Eu acho que ainda não caiu a ficha (risos). Com certeza não! Eu costumo dizer que me considero uma atriz que escreve para existir, trabalhar e criar. Nunca passou pela minha cabeça que uma história minha avançaria para literatura, porque, nossa!, eu acho isso tão grandioso. Nem ousava pensar. Mas acho que, quando é para ser, a vida encontra um caminho. Muita gente da plateia pedia o livro, muitos pais, professores. Me dei um tempo para ver se isso também ecoava em mim. Quando vi que sim, arregacei as mangas e fui atrás de realizar mais esse sonho”.

Na peça você aponta, no livro tem de mostrar

Fran Ferraretto fala de seu processo de transformar a forma dramatúrgica em texto literário: “Pois é, precisei estudar um pouco essa transição de dramaturgia para literatura. Numa peça de teatro você aponta mais. Numa linguagem narrativa você mostra mais com imagens. É bem diferente. Fiquei com medo de perder as sutilezas nesse caminho, ou de deixar pouco espaço para a imaginação do leitor. A peça tinha chegado muito bem nas pessoas, e fiquei receosa de o livro perder ou em humor ou na emoção, mas nada que muitas versões, testes, opiniões de amigos e meses de trabalho não conseguissem superar, né?! Hoje estou muito feliz com o resultado. E as ilustrações também agregaram muito”.

Cena do espetáculo Valentim Valentinho. Foto Luis Paulo Luciano

E o sucesso da peça? Como Valentim tem se comportado pelos palcos por onde já passou? Fran, que também é atriz na própria peça, até se emociona ao responder: “Esse espetáculo me trouxe as coisas mais bonitas que já vivi em minha carreira. Desde a estreia, em janeiro deste ano, no Sesc Belenzinho, com a repercussão do público, das críticas, comentários e mensagens que recebemos, foi tudo tão especial e sincero. Depois, na sequência, a turnê por nove cidades do Interior, e isso é muita coisa para um espetáculo infanto-juvenil, você sabe. Aí, voltar para São Paulo e ter a plateia sempre lotada no Sesc Interlagos tem sido outro presente incrível, e nos mostra a força dessa história que estamos contando. Às vezes, do palco, eu olho para a plateia, e tem gente com os olhos marejados e com um sorriso espontâneo, isso faz tudo valer a pena. Tudo!”

Serviço

NOITE DE BRINQUEDO NO TERREIRO DE YAYÁ.

Teatro Cacilda Becker. R. Tito, 295 – Lapa. Sábados e domingos (Exceto dia 21 de outubro), às 16h. Dia 11/10 – sessões extras às 10h30 e às 14h30. Dia 12/10 – sessão extra às 16h.
Em seguida: Fábrica de Cultura Brasilândia. Av. General Penha Brasil, 2508 – Brasilândia. Dias 9 e 10/11. Quinta e sexta, às 10h30 e às 14h30.
Em seguida: Espaço Cultural CITA. R. Aroldo de Azevedo, 20 – Jardim Bom Refúgio. Dias 18 e 19/11. Sábado e domingo, às 16h. Dia 22/11, Quarta às 10h e às 14h30.

VALENTIM VALENTINHO

Sesc Interlagos. Av. Manuel Alves Soares, 1.100, Parque Colonial, tel. 11 5662-9500. Dia 1º de outubro. Domingo, 15 horas. Ingressos: Grátis.
Em seguida: Teatro Sérgio Cardoso – Sala Paschoal Carlos Magno. R. Rui Barbosa, 153 – Bela Vista. Temporada:  De 7 a 29 de outubro de 2023. Sábados e domingos, às 15h, Ingressos: R$ 40 (inteira) e
R$ 20 (meia-entrada)

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Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990 na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo, o Caderno 2, de 2003 a 2011. Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij (Centro Brasileiro de Teatro para Infância e Juventude). Por sua peça Salmo 91 , adaptação do livro Estação Carandiru, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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