Falando sobre a busca dos adolescentes por espaço, aceitação e expressão, “Catimba” está de volta para apenas duas sessões gratuitas e ao ar livre no Sesc Pinheiros
Por Dib Carneiro Neto
Fazer catimba é querer confundir um oponente. No futebol, por exemplo, é ficar fazendo fita, firula, demorando, atrasando uma jogada de propósito, uma estratégia astuciosa para evitar que o oponente consiga desenvolver seu jogo. Pois a 2 Mililitros Cia. Teatral vai fazer muita catimba em cena neste fim de semana de pós-feriado. O grupo está de volta com o espetáculo Catimba, um infanto-juvenil (censura livre, porém mais apropriado para “crianças” de 11 a 17 anos) que conta a história de reviravolta do Glorioso Grêmio Recreativo de Pirapora da Vila Pauliceia, como diz o subtítulo. Ou seja, uma peça sobre futebol, grátis, ao ar livre, no Sesc Pinheiros.
No enredo, o time precisa decidir quem substituirá o craque, que foi lesionado na partida anterior e não poderá jogar na próxima. Só há duas opções para substituí-lo: Mosquito, um garoto que odeia jogar futebol, ou Leona, menina craque de bola. E agora? São dois possíveis finais e adivinhe quem vai decidir? Você. Sim, o público decidirá quem entra em campo.
Catimba [A Reviravolta do Glorioso Grêmio Recreativo de Pirapora da Vila Pauliceia e Seu Elenco Incomum] já foi visto por 2 mil espectadores em 24 sessões. É um sucesso do grupo fundado em 2017. Com direção de Thiane Lavrador, dramaturgia de Fernanda Gama e direção musical de Lucas F. Paiva, que também está em cena ao lado de Henrique Reis, Júlia Mariano e Mariana Brasileiro, Catimba – com música ao vivo – é encenada como em uma verdadeira partida de futebol, dividida em primeiro e segundo tempo, prorrogação e decisão por pênaltis. Não faltarão os narradores de TV com seus bordões, os repórteres e suas entrevistas, os apitos, o banco de reservas, o bandeirão, o hino do time e a torcida barulhenta.
Cadê a bola?
Mas vejam só: o único objeto que não está presente na montagem é a bola, uma opção da diretora Thiane Lavrador. Curioso, não? “Acho que a ideia foi minha, mas foi algo que aconteceu de forma muito orgânica”, dia ela. “Uma bola nesta montagem não fazia sentido. Durante os ensaios, foi ficando cada vez mais evidente que ela não era necessária e que podemos mostrar uma história totalmente voltada para o futebol sem ter uma bola. Desafiei a equipe para focarmos em outros componentes do ambiente futebolístico e conduzi os atores por um processo de criação focado na fisicalidade. O resultado ficou muito lúdico e divertido.”
Thiane diz que Catimba é uma peça que usa a temática do futebol para falar de outras coisas, mas não é uma peça sobre futebol. Não é?!! Ela explica: “Eu me debrucei em entender como o futebol faz parte do cotidiano do brasileiro e as referências do imaginário coletivo sobre esse esporte. Em cena, temos uma série de elementos do universo do futebol, mas buscando fugir do óbvio. O banco de reservas e a bandeirinha, por exemplo, são ocupados por instrumentos e adereços – e a lona que delimita o espaço cênico traz uma assimetria e estranheza que é dramaturgia.”
Catimba é, inegavelmente, uma peça bastante coreografada. Thiane Lavrador comenta esse aspecto da montagem: “Minha primeira formação é em dança e, mesmo quando migrei para o teatro, sempre me interessei pela linguagem do teatro físico. Acredito que minha trajetória é um dos motivos pelo qual Catimba se configura como uma peça mais coreografada. O outro motivo são as próprias propostas cênicas trazidas pelos atores. Como o espetáculo foi criado por processo colaborativo, ficou evidente que se tratava de um elenco que gosta de explorar comédia física, música e trabalhar a construção de personagem a partir de pesquisas corporais. Um fator marcante no esporte é o ritmo eletrizante que ele imprime e busquei reproduzir isso também. Colocamos a plateia em lugar de torcida, canções estão presentes ao longo de toda a peça e sempre parece ter uma certa urgência, a mesma urgência de se fazer gol nos 90 minutos de um jogo”.
Construção de identidade
Escrever tendo o futebol como pano de fundo mudou um pouco a relação da dramaturga Fernanda Gama com esse esporte. Ela conta: “Nunca fui das maiores fãs, embora seja louca por Copa do Mundo. Só depois do processo de criação do Catimba passei a acompanhar mais, especialmente o feminino. Mas, como dizemos na peça, é impossível morar no Brasil e não se envolver nem que seja um pouquinho, é muita gente falando disso. O futebol é parte da construção da identidade do brasileiro. Fui buscar essas memórias de como o futebol marcou minha vida para me aproximar do tema, e os detalhes que não sabia sempre checava com o elenco, que é bem mais futebolístico do que eu”.
Dramaturga e diretora se afinam na percepção de que a peça não é exatamente sobre futebol. Diz Fernanda Gama: “É sobre querer conquistar seu espaço, sobre a nossa necessidade de pertencer a um grupo e ter os direitos respeitados ali. Os jovens personagens dessa peça se encontram por meio do futebol, mas poderia ser qualquer outra coisa. A Leona busca um espaço no futebol bem como outras meninas lutam por espaço em outras áreas, porque, na nossa sociedade, para elas é sempre mais difícil. Então, o futebol aqui acaba sendo só um exemplo. E como é um exemplo que quase todo mundo conhece, facilita ampliar a conversa com nosso público.”
Fernanda Gama é uma craque em escrever teatro para a faixa de adolescentes. Space Invaders, por exemplo, foi um espetáculo marcante de sua lavra. Por que ela gosta de se dirigir aos jovens? A resposta que ela nos dá é muito bonita e inspiradora. Confira: “Talvez porque eu tenha tido uma adolescência difícil e encontrei poucas obras que me ajudavam a entender o que eu sentia. Então, faço uma tentativa de oferecer para os jovens de hoje algo que eu não tive. Mas tem algo encantador sobre escrever pra crianças e jovens: a honestidade da plateia. Quando amam, amam. Quando odeiam, odeiam. Não tem meio termo. É sempre um desafio, é sempre arriscado, e acho que por isso mesmo é tão gostoso de fazer.”
Inspiração na várzea paulistana
A ideia de falar sobre futebol em uma peça de teatro para jovens partiu de Júlia Mariano, que em Catimba dá vida a Leona e é fundadora da 2 Mililitros Cia. Teatral, ao lado de Thiane Lavrador. Júlia também conversou com o Canal Teatro MF. Reparem em sua empolgação: “Sou uma apaixonada por futebol e tenho proximidade com o que acontece na várzea paulistana. Além disso, acredito que o apelo popular do esporte pode ser uma via de entrada para que jovens se interessem e passem a procurar por atividades culturais. A ideia inicial veio da leitura do conto O Pequeno País, de Nick Hornby. Quando entrei em contato com o texto pela primeira vez, em 2018, indiquei que a Thiane também lesse porque aquilo dava uma peça. Começamos a adaptar o texto para o teatro e fizemos três ensaios com uma outra atriz. O processo não foi adiante, mas nós não engavetamos a ideia, sabíamos que era uma questão de tempo até que a peça se concretizasse. Ao longo dos anos, outras referências literárias também foram chegando: Febre de Bola, do Hornby também, Futebol ao Sol e à Sombra e Fechado por Motivo de Futebol, do Eduardo Galeano. Também trouxemos a realidade para o futebol de várzea, ambiente onde poderíamos encontrar mulheres e homens dividindo campo numa partida e assim tínhamos um argumento mais próximo do que acabou se tornando o texto da Fernanda Gama.”
Para Júlia Mariano, já que gosta tanto de futebol, qual será que foi o seu desafio maior de atriz neste espetáculo? Ela diz de pronto: “Com certeza foi a trilha ao vivo. Tenho um pouco de intimidade com percussão, então tocar propriamente não foi tão difícil. Mas cantar… são outros quinhentos. Tocar e cantar ao mesmo tempo é um Deus nos acuda. Mas, para nossa sorte, ter o Lucas F. Paiva não só na direção musical, mas como parte do elenco, também contribuiu para que esse aprendizado fosse leve e divertido.”
E o que a peça Catimba representa na trajetória do grupo? Júlia responde: “É o nosso primeiro trabalho voltado ao público jovem e nós brincamos que gostamos de trabalhar com os preteridos: bebês, crianças pequenas e adolescentes. Há muita oferta de teatro infantil, mas – para os extremos (início e final da infância) – ainda percebemos que existem lacunas. Gostamos de caminhar nessas bordas e trabalhar com espetáculos que não dependam do edifício teatral. Catimba é originalmente pensado para acontecer em espaços abertos, lidando com as possibilidades e desafios que esses locais oferecem. Mas, acima de tudo, ele representa a concretização de uma ideia que gestamos por 5 anos e que pôde ser executada com maestria, contando com uma ficha técnica privilegiada.” Falou e disse.
Serviço
Catimba [A Reviravolta do Glorioso Grêmio Recreativo de Pirapora da Vila Paulicéia e Seu Elenco Incomum]
Sesc Pinheiros – Praça. Rua Paes Leme, 195.
23 e 24 de novembro, sábado e domingo, 16h. Grátis