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A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

Literatura oral nordestina inspira peça que celebra a fabulosa força de imaginar

Sinopse

A Botija”, da Cia Fabulinhando, reúne contos ancestrais recolhidos pelo interior do Rio Grande do Norte e mostra às crianças que o maior tesouro desta vida é poder contar e ouvir histórias

Por Dib Carneiro Neto

Três irmãos (duas meninas e um menino) retornam da cidade grande para o quintal de sua avó, no sertão nordestino, em busca da botija de ouro sobre a qual ela sempre falava quando eles eram pequenos. O que eles pensam e querem encontrar com essa volta ao passado e às histórias fantásticas do imaginário de uma ancestral

Esse é o ponto de partida para o infantil A Botija, Um Pequeno Inventário de Histórias Fantásticas do Nordeste Brasileiro, da Cia Fabulinhando, do Rio Grande do Norte. Está em cartaz na Sala Vermelha, do Itaú Cultural, e assim ficará todos os domingos, às 16 horas, até o final de julho. Dirigido pelos atores Jhoao Junnior e Maria Rosa, que entram em cena ao lado da musicista Elaine Silva, o espetáculo tem como inspiração a literatura oral da região interiorana potiguar

Cena do espetáculo A Botija. Foto Leonardo Souzza

“Nessas histórias escolhidas, conseguimos elaborar medos, forjar coragem, criar contornos físicos e mentais a partir da imaginação”, nos conta Jhoao Junnior. “Mergulhar no imaginário das histórias que vêm dos sertões do Nordeste desse País nos coloca diante de uma relação com nossas imagens interiores de um país.” Na entrevista que se segue, o ator, diretor e artista-educador formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Jhoao Junnior, nos encanta e nos enreda com palavras fundamentais sobre o processo de criar uma peça tão sensível e fabulosa. Aposto que você, leitor do Canal Teatro MF, vai terminar a leitura desta entrevista, que tem declarações tocantes e inspiradoras, morrendo de vontade de ver A Botija. Aposto e ganho! 

O que representa/significa/simboliza o ato de procurar uma botija de ouro?
Jhoao Junnior – A busca pela botija revela uma busca pelos tesouros que estão dentro da gente e que não podemos perder. Incentiva adultos a perceberem onde estão os seus tesouros e como se conectar com eles para que esses tesouros, que são histórias, cheguem até às crianças. Procurar por si e pela criança viva dentro de cada um. Fazer com que essa criança que vive dentro de cada um de nós se sinta segura e feliz. Seguir em busca daquilo que nos constitui e nos fortalece enquanto pessoa ao longo da vida. Ir em busca das heranças e do legado de nossos antepassados, sobretudo as avós, e saber que somos feitos de histórias. Essas histórias vão compor o nosso imaginário e a capacidade de sonhar e abstrair. É a capacidade de sonhar que irá nos conectar com a força essencial da vida e o respeito mútuo a toda e qualquer existência nesse mundo. Não o sonho dentro de uma perspectiva materialista, mas o sonho de um ser integrado à pedra, à serra, à mata; o respeito aos mistérios, a quem e o que veio antes da gente. Sonhar. Imaginar.

Adiante um pouco, para quem nunca ouviu falar delas, quem são a Mulher do Sonho e a Princesa da Serra? Que outras figuras míticas desconhecidas no Sudeste estarão na peça?
Toda a dramaturgia foi construída a partir de uma pesquisa em literatura e história oral em cidades do sertão potiguar. Então, há particularidades das histórias que estão relacionadas aos seus narradores. A Serra da Princesa é conhecida e relatada pelos moradores da cidade de Paraú-RN, pois há uma serra na cidade chamada Serra da Cabeça do Areré, na qual a grande pedra tem o formato de uma mulher dormindo. Essa história está na boca de todo morador da cidade, das crianças aos idosos. Eles dizem que é uma princesa que vive dentro da pedra morando num castelo. Quando você chega perto da pedra e encontra uma abertura que parece uma janela, consegue ouvir sons de uma festa. Em algum momento, a princesa irá se desencantar e sair de dentro da pedra. Já a Mulher do Sonho é uma adaptação de uma história contada por uma dona de casa da cidade de Senador Elói de Souza, que diz que não conseguia dormir direito porque sempre sonhava com uma mulher pedindo para ser libertada, porque estava presa numa casa abandonada na cidade. A mulher no sonho dizia que, para libertá-la, ela precisaria ir à casa abandonada e encontrar a botija do tesouro, porque só assim ela seria libertada e iria embora do sonho.

Outra cena do espetáculo A Botija. Foto Leonardo Souzza

Por que é importante resgatar esses mitos do Nordeste em peça para crianças? Ou seja, qual o papel do realismo fantástico na formação de plateia?
Ouvir histórias é um processo essencial na constituição e desenvolvimento humano. Nas histórias, conseguimos elaborar medos, forjar coragem, criar contornos físicos e mentais a partir da imaginação. Nesse sentido, mergulhar no imaginário das histórias que vêm dos sertões do Nordeste desse País nos coloca diante de uma relação com nossas imagens interiores de país. Como um artista migrante e, sabendo que “nessa cidade aí todo mundo tem um pai, uma mãe, um avô, uma avó, um antepassado que veio do Nordeste desse país” (texto da dramaturgia), estamos evocando a memória desses antepassados por meio dessas histórias e, assim, buscando trazer novas imagens de Nordeste para esta cidade. A vida tem encantaria e magia, mas para isso é preciso fugir da lógica produtiva dessa cidade para que possamos abrir espaços interiores de ver a vida com olhos de criança. Tudo tem alma para o sertanejo: a noite, a mata, a pedra, o cacto. E há formas de elaborar a vida a partir das encantarias e encantados, assim como pelas histórias. Sempre me pego pensando no ritmo dessa cidade e no quanto ele nos tira a capacidade de sonhar verdadeiramente. Sonhar-se. A criança é isso. Como aprender com elas? Como podemos provocar os adultos a uma educação que se dá pelas histórias, pelo sonho? Penso que, nesse sentido, com o realismo fantástico evocado por essa dramaturgia, podemos abrir espaços nas imagens interiores do público, provocar, ampliar caminhos para a imaginação. Isso para mim é fundamental num processo de formação de plateia e de pensar uma dramaturgia do espectador. A própria encenação convoca crianças e adultos a refletirem sobre isso. Na estreia, uma criança disse que não sabia do tesouro (as histórias) porque a mãe não lhe contava histórias. A mãe sorriu disfarçadamente, mas na brincadeira ali, junto da plateia, pactuou com o filho que iria lhe contar histórias.

Como o espaço do quintal marcou sua vida e o que você trouxe de autobiográfico para a peça?
Eu fui uma criança que cresceu sendo criada em quintais e jardins de avós. Meus pais trabalhavam muito, então o quintal e o jardim foram uma espécie de mundo a ser desbravado, no qual eu inventava histórias, criava pequenos mundos com pedras, cacos de telhas, folhas e flores. Na casa de Teia, minha avó adotada (sim, eu tive uma avó que me adotou), havia dois quintais. Um que tinha plantas, vasos e um pé de manga, e outro que era separado por uma grande porta de ferro. Para chegar nele, eu tinha que abrir essa porta. Para mim, era um portal mágico para um mundo desconhecido. Eu tinha medo, mas ao mesmo tempo me sentia desafiado a desbravá-lo. Entrava nele escondido, mas com cuidado e respeito. Lagartixas, galinhas, saguins, escorpiões, passarinhos, um coqueiro imenso que havia no fundo, eram seres que me convidavam ao respeito por meio do medo que eu sentia de entrar por aquela porta, mas também a coragem amadurecida de pisar macio em terreno desconhecido. Já no jardim de minha avó Nair, que se juntava ao seu quintal, pois dava a volta na sua casa, eu brincava de fazer teatro com as plantas, sementes e insetos. Minha avó tinha uma coleção de livros para crianças na estante da sala e ela me botava para ler. Logo depois de ler, eu levava comigo aquelas imagens para, de alguma forma, reproduzir com tudo que encontrava no jardim. Eu passava uma tarde inteira ali. Tomava banho de mangueira, jogava água no marimbondo que queria voar para cima de mim, regava as sementes que plantava. Tudo isso está presente nas dramaturgias que escrevo para crianças. A avó é sempre uma personagem central e arquetípica. No caso d´’A Botija’, esse retorno ao quintal da casa dela no sertão é um convite ao elenco, também composto por duas mulheres nordestinas, Elaine Silva (Alagoas) e Maria Rosa (Ceará), a visitarem os seus quintais e suas avós. Há um varal na cenografia que é a metáfora do tempo, visto que amanhece quando estendemos o sol e anoitece quando trocamos o sol pela lua. Mas é também nesse varal que, ao final da encenação, trazemos imagens de nossas avós para estender nesse fio de tempo que carregamos e que está presente em cada um/uma de nós nesta peça.

Mais uma cena do espetáculo infantil A Botija. Foto Leonardo Souzza

Como você caracterizaria o trabalho para crianças de sua companhia, a Fabulinhando? Que temas mais vocês querem abordar, que linguagens perseguem, como gostariam de ser lembrados?
Fabulinhando é uma expressão que inventei quando, numa sessão de contação de histórias, as crianças começaram a criar novos caminhos narrativos. Eu fui me abrindo àquela experiência e fui dando linha para a palavra das crianças. Elas começaram a fabular outras possibilidades que se relacionavam diretamente com a vida e a realidade social delas naquele momento. Assim, nasceu esse nome, Fabulinhando. Nessa mesma sessão, propus às crianças o desenho como forma de materializar as imagens que elas traziam. Assim, de uma certa forma, a Cia surge desse ato de “fabulinhar” junto às crianças. Então, a narrativa é um elemento fundamental no processo de constituição de pesquisa que busca, por meio de uma relação entre narrativo e dramático, estabelecer esse ato de fabulinhar. Outra característica que se apresentou foi a relação com as artes plásticas/visuais, visto que o desenho, o vídeo e o artesanato vêm se mostrando pontos de partida para a criação das dramaturgias da companhia. A primeira peça da Cia, por exemplo, nasce de uma dramaturgia criada a partir do quadro ‘Operários’, de Tarsila do Amaral, no qual três operários fogem do quadro e vão questionar a autora sobre os seus desejos de vida. Eles querem escolher sobre suas vidas e não querem mais estar ali dentro daquele quadro. Essa peça terminava com o elenco e o público criando em tempo real uma nova narrativa de vida para os personagens do quadro. Assim, penso que Fabulinhando vem compondo dramaturgias nessa relação entre narrativa oral, memória e artes visuais em encenações que estabelecem e abrem caminho para a participação ativa das crianças exercerem sua voz.

Serviço

A Botija, Um Pequeno Inventário de Histórias Fantásticas do Nordeste Brasileiro

Itaú Cultural. Avenida Paulista, 149. Telefone (11) 2168-1777

Domingos, às 16h, com exceção de 2 de março. Grátis. Ingressos reservados na terça-feira da semana da apresentação pelo site do IC (itaucultural.org.br)

Até 27 de julho (estreou 9 de fevereiro)

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Ficha Técnica

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Serviço

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