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“Bom Dia, Eternidade” retrata a vulnerabilidade social através da velhice de quatro irmãos pretos

Sinopse

Peça do coletivo O Bonde dramatiza histórias dos familiares de artistas espelhadas por uma banda que executa canções de Djavan, Johnny Alf e Lupicínio Rodrigues, entre outros

Por Dirceu Alves Jr.

O espetáculo Bom Dia, Eternidade, em cartaz no Teatro Anchieta do Sesc Consolação desde o dia 20, é o terceiro trabalho do coletivo paulistano O Bonde – e mostra a rápida ascensão de uma companhia capaz de acumular prestígio a cada projeto. Criado em 2017, o grupo formado pelos artistas Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves, todos entre 28 e 38 anos e alunos da Escola Livre de Teatro de Santo André na década de 2010, desenvolve uma contundente pesquisa sobre a necropolítica para os corpos pretos na história brasileira. 

Como sempre trabalham com um diretor convidado, o escalado da vez é Luiz Fernando Marques, o Lubi, um dos fundadores do Grupo XIX de Teatro, e que, nos últimos anos, comandou o Grupo Magiluth em Estudo nº 1 Morte e Vida e a atriz Renata Carvalho em Manifesto Transpofágico. “Eu os conhecia das aulas da Escola Livre e acompanho os seus trabalhos, então, como minha essência sempre foi colaborativa, parto de uma escuta para responder a uma provocação na base do afeto”, conta Lubi.  

Elenco de Bom Dia, Eternidade, do coletivo O Bonde. Foto Júlio Cesar Almeida

A montagem de estreia de O Bonde, o infantil Quando eu Morrer, Vou Contar Tudo a Deus, texto de Maria Shu dirigido por Ícaro Rodrigues, contabiliza 400 apresentações desde 2019 entre a capital, o interior e participações em festivais. Em tom de fábula vem à cena a história real de um menino africano flagrado em uma mala pelo raio-X do aeroporto ao tentar entrar na Europa. 

Voltado ao público adulto, o segundo trabalho, Desfazenda – Me Enterrem Fora desse Lugar, é centrado em quatro pessoas pretas levadas por um padre branco para trabalhar em uma fazenda em um modelo próximo ao escravagista. Com direção cênica de Roberta Estrela D’Alva e musical de Dani Nega, a peça foi premiada pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como melhor produção virtual de 2021 e, no ano seguinte, na versão presencial, colocou Lucas Moura entre os finalistas do Prêmio Shell de dramaturgia. “Percebemos que, além de tratar da mortalidade, a palavra ‘morte’ aparece nos títulos dos três espetáculos, ainda que, em Bom Dia, Eternidade, de forma subjetiva”, analisa Salaberg, responsável pela dramaturgia.    

Enquanto Quando eu Morrer, Vou Contar Tudo a Deus abordava a infância e Desfazenda – Me Enterrem Fora desse Lugar enfocava a transição para a vida adulta, Bom Dia, Eternidade fala sobre o envelhecimento e o abandono enfrentado na terceira idade. Quatro irmãos sofreram um despejo quando eram crianças e foram obrigados a deixar o terreno em que moravam. Quase seis décadas depois, a justiça é feita e eles precisam decidir o que fazer com o dinheiro da restituição recebida pela desapropriação.

Elenco de Bom Dia, Eternidade, do coletivo O Bonde. Foto Júlio Cesar Almeida

Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves interpretam os personagens em um espelhamento com um quarteto de músicos, o baterista Cacau Batera, de 80 anos, o violonista e contrabaixista Luiz Alfredo Xavier, de 85, a cantora Maria Inês, de 83, e pianista Roberto Mendes Barbosa, de 59. Sob a direção musical de Fernando Alabê, eles costuram as histórias da peça com canções de Djavan, Johnny Alf, Jorge Aragão, Jorge Ben Jor, Lupicínio Rodrigues e Tim Maia, entre outros compositores pretos.   

Lubi define a interação entre atores e músicos como o cruzamento de um caminho documental e ficcional capaz de borrar os limites da dramaturgia. A maioria das histórias faz parte de narrativas familiares dos próprios artistas, de pessoas que não se enxergam como velhos no futuro porque viram seus pais e mães morrerem ainda jovens. A banda, no entanto, chegou aos ensaios depois de seis meses do processo iniciado, e o elenco viu sua energia renovada diante das perspectivas abertas. “Nunca pensamos em mimetizar a velhice, mas a presença deles trouxe a ideia da vitória de quem está vivo, aos 80 e poucos anos, com perseverança e dedicação”, comenta o diretor.   

Bom Dia, Eternidade trata de uma gente que sempre viveu em situação de vulnerabilidade – e a luta pela moradia é só uma destas questões. Por isso, as memórias que identificam os personagens não estão no concreto das paredes e, sim, em objetos que, espalhados pelo palco, formam a cenografia e pertenceram aos familiares dos artistas. Móveis, quadros, bibelôs, troféus, tudo o que representa recordações e pode ser carregado para qualquer outro lugar, deixam a peça bastante sensorial. “Bom Dia, Eternidade é o nosso espetáculo mais solar não só porque encerra a trilogia, mas porque é o fim deste corpo dramatúrgico que nasceu criança, cresceu e amadureceu, chegando agora à terceira idade e fim, na cultura africana, representa alegria e celebração”, afirma Jhonny Salaberg. 

Integrantes do elenco de Bom Dia, Eternidade, do coletivo O Bonde. Foto Júlio Cesar Almeida

O ator e dramaturgo, de 28 anos, acredita que o Brasil atravessa uma curva histórica, depois das tensões políticas do bolsonarismo e do massacre pandêmico. E, neste panorama, companhias voltadas ao teatro preto, como O Bonde, Os Crespos, Clariô e o Coletivo Negro, representam a ocupação de um espaço na cultura que antes não era acessado. “As narrativas negras estão ganhando mais cor, sofisticação e profundidade, atingindo um outro lugar de lapidação”, diz Salaberg. “Posso dizer que sou um jovem artista preto entre outros que têm o dobro, quase o triplo da minha idade, algo que em um sistema branco jamais existiria, para contar histórias e reavivar memórias.”

Serviço

Bom Dia, Eternidade.

Teatro Anchieta – Sesc Consolação. Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque.

Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h.

Sessões na quinta (25), às 18h, e nos dias 15 e 22, às 15h. R$ 50.

Até 25 de fevereiro.

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Ficha Técnica

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Serviço

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