Espetáculo gratuito reúne trinta artistas no palco em uma recriação pouco previsível da peça inacabada do poeta morto em 1852, aos 20 anos
Por Dirceu Alves Jr.
O diretor Carlos Canhameiro, de 46 anos, vive na ponte aérea entre São Paulo e Lyon desde 2021. Na França, sua companheira, a atriz Paula Serra, dedica-se ao doutorado sobre recepção teatral em peças infantis e é inevitável não observar as profundas diferenças entre os dois países quando o assunto é o respeito aos trabalhadores da cultura. “Não sou um grande entusiasta da Europa, pelo contrário, sei de todos os males que ela ainda causa, mas é incomparável, lá os artistas fazem parte da seguridade social”, declara. “É só pensar que Zé Celso morreu por causa de uma falha de manutenção no aquecedor do apartamento dele. Se fosse um europeu, seria o mais importante homem de teatro do continente.”
Observações com esta não ficam restritas às revoltas teóricas e ganham a prática na realização dos espetáculos que assina no Brasil. O inconformismo atiça a sua criatividade e a exigência consigo mesmo. “O teatro brasileiro não deve nada ao europeu, muito careta e ligado a estruturas formais”, compara.
Agamenon 12H, originalmente um monólogo do dramaturgo argentino Rodrigo García, se transformou em suas mãos em doze solos protagonizados por uma dúzia de atores e atrizes que atravessavam 12 horas de apresentações ininterruptas no Sesc Avenida Paulista em agosto de 2022. Em tempos de redução orçamentária, em que a maioria das produções se restringe a, no máximo, três ou quatro atores, tratou-se de um feito. “Está tudo precarizado”, lamenta.
Em seu trabalho seguinte, xs culpadxs, visto entre agosto e outubro do ano passado, o imenso cenário, criado por ele e José Valdir Albuquerque, reproduzia um bar e contava com seis atores e sete músicos no palco. “Sei que minhas opções não são viáveis financeiramente, ficamos restritos a uma temporada e, desta vez, são trinta pessoas em cena, mas acredito no teatro como algo realmente coletivo e, se a peça for potente em cinco semanas de temporada, fico satisfeito”, garante.
É isto mesmo. O espetáculo MACÁRIO do brazil, inspirado na peça de Álvares de Azevedo (1831-1852), estreia nesta sexta, 2, no Tusp da Rua Maria Antônia. O elenco reúne quatro atores e atrizes (Alitta, Danielli Mendes, José Roberto Jardim e Nilcéia Vicente), quatro músicos, dois cantores e um coro de vinte jovens artistas de aproximadamente 20 anos.
São estudantes de teatro e dança, selecionados através de um chamado pelas redes sociais, que encantam o diretor a cada ensaio. “Eu quis colocar esses moleques em cena para dialogar com a obra do Álvares de Azevedo, que morreu aos 20 anos e deixou essa peça inacabada”, afirma. “É impressionante como esta é uma nova geração muito diferente em suas ideias e formações, mas consegue articular tão bem esse discurso do autor.”
Macário foi publicada em 1855, depois da morte de Azevedo. Canhameiro conheceu o texto por alto na faculdade e o releu há três anos durante um curso de dramaturgia do CPT (Centro de Pesquisa Teatral) do Sesc, ministrado por Leda Maria Martins. Ficou chapado ao deparar com tanta contemporaneidade na sua forma e meteu na cabeça que precisava montá-lo. “Enxerguei muito teatro ali e grandes nomes da crítica literária, como Antonio Candido e Sábato Magaldi, sempre a consideraram uma peça não encenável”, conta. “Deve ser porque ali não encontravam um acabamento literário ou mesmo pela sua interrupção.”
Dividida em dois episódios, a história começa com o estudante Macário (interpretado por José Roberto Jardim e Alitta) conversando com um estranho e esse interlocutor ninguém mais é que Satã (papel de Nilcéia Vicente). Na sequência, o protagonista, com pensamentos suicidas, fala sobre amor, filosofia e literatura com o amigo Pensarosa (representado por Danielli Mendes), que está apaixonado, e, depois, é levado por Satã para a orgia em uma taverna.
O encenador avisa que não se trata do resgate de um clássico e menos ainda de uma homenagem ao autor. Pelo contrário, ele fez muitas intervenções no original, como jogar toda a peça escrita em segunda pessoa para a primeira pessoa. “Justamente por ser uma dramaturgia inacabada, eu me senti com total liberdade para fazer o que bem imaginasse a ponto de nem eu mesmo ter o controle do que pode acontecer em cena”, diz.
O “brazil” com Z e letra minúscula do título, segundo Canhameiro, é só uma brincadeira com a ideia do país como produto de exportação que não reconhece e celebra os seus próprios patrimônios. “Se Macário fosse uma peça escrita, por exemplo, pelo Georg Büchner (dramaturgo alemão, autor de Woyzeck, de 1877), seria muito mais valorizada aqui e lá fora, porque conhecemos melhor Woyzeck que Macário”, observa.
Para justificar a sua inventividade permanente, Canhameiro declara que tem uma fé inabalável na teatralidade e na capacidade de manipulação na hora de criar uma cena e seus possíveis efeitos. Também lança um olhar questionador para o excesso de discurso nas dramaturgias montadas na atualidade e critica aqueles colegas que parecem, segundo ele, ter perdido a noção de ficção.
“A teatralidade não é algo burguês ou alienante e o problema é que, agora, o público vai ver uma peça e leva bronca o tempo inteiro, como se fosse o culpado de tudo o que acontece”, provoca Canhameiro. “Eu acho insuportável sair de casa para ver uma expressão artística e encontrar exatamente o que você espera e, por isso, acredito que essa coletividade pulsando em cena é uma forma de manipular as utopias.”
Serviço
MACÁRIO do brazil.
Tusp Maria Antônia – Rua Maria Antônia, 294, Vila Buarque.
Quinta a sábado, 20h. Domingo, 18h. Grátis. Ingressos distribuídos uma hora antes no local.
Quatro palestras de 30 minutos serão ministradas entre as duas partes da montagem nas sextas-feiras.
9/8 – Andréa Sirihal Werkema, doutora em Literatura Brasileira e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
16/8 – Ave Terrena, dramaturga, diretora, poeta e professora da Escola Livre de Teatro de Santo André.
23/8 – Janaina Leite, atriz, diretora, dramaturga e pós-doutoranda pela Escola de Comunicação e Artes da USP.30/8 – Welington Andrade, doutor em Literatura Brasileira pela USP, professor de Língua Portuguesa da Faculdade Cásper Líbero e editor e crítico de teatro da revista Cult.