“Codinome Daniel”, do Núcleo Experimental, conta a trajetória do homem que se juntou à luta armada e também lutou pelos direitos das pessoas portadoras de HIV/Aids no Brasil
Por Ubiratan Brasil
No momento mais grave da pandemia da covid, quando o isolamento social era obrigatório, o diretor e dramaturgo Zé Henrique de Paula, do grupo Núcleo Experimental, vasculhou suas estantes em busca de um livro que pudesse ajudá-lo a passar o tempo. Revolucionário e Gay: A Extraordinária Vida de Herbert Daniel (Civilização Brasileira), escrito pelo historiador e brasilianista norte-americano James Green, despertou sua atenção. “Fiquei impressionado com a história e logo pensei em uma versão teatral”, conta Zé Henrique que, além de dirigir, escreveu a dramaturgia e as letras do musical Codinome Daniel, espetáculo inspirado naquela obra e que inicia temporada no Teatro do Núcleo Experimental, a partir de 12 de janeiro.
Trata-se da trajetória de Herbert Eustáquio de Carvalho (1946-1992), que se destacou como ativista LGBTQIAPN+, especialmente na luta pelo direito das pessoas com HIV/Aids. E, durante a ditadura militar, integrou grupos políticos de esquerda, como o Polop, Colina, VAR-P e a VPR, da qual foi um dos líderes, ao lado do comandante Carlos Lamarca, e na qual recebeu o codinome de Daniel.
“Era um homem desconfortável em seu próprio corpo, pois sua atuação revolucionária contrastava com a dificuldade em aceitar sua homossexualidade, que ele via como um ‘exílio interno’, na sua própria definição”, comenta o ator Davi Tápias, que apresenta muita semelhança física com Daniel e o interpreta com sensível cuidado, especialmente na postura mais encolhida, marca da timidez. “E, em sua vida, ele enfrentaria outros ‘exílios’ internos.”
“Ele foi um revolucionário gay que desafiou tanto a ditadura de direita quanto os setores da esquerda que reproduziam a homofobia e a heteronormatividade”, comenta Zé Henrique, que aproveitou um terrível momento na trajetória de Daniel para construir cenas imaginárias com muita poesia e teatralidade.
É um momento em 1971, quando o ativista viveu sozinho em um “aparelho”, como eram definidos os locais onde grupos viviam clandestinamente, fugindo da repressão militar. Foram três meses em que ele não podia produzir absolutamente nenhum tipo de barulho, nem mesmo o abrir de uma torneira ou a descarga de uma privada. Os alimentos eram entregues esporadicamente e já preparados para consumo, evitando, por exemplo, ter de abrir algo embrulhado. Finalmente, não podia acender luzes, o que deixava suas noites ainda mais escuras e solitárias.
“Ele acreditava que estava ficando louco”, conta o diretor, que retrata esse momento com lirismo, ao criar encontros imaginários de Daniel com amigos queridos, delírios de quem sofria uma forte pressão psicológica. São os mais belos momentos da peça. “Ajudou o fato de Daniel ter dirigido peças amadoras no curto período em que cursou faculdade de Medicina na UFMG, portanto, tinha a noção de criar cenas”, pontua Zé Henrique.
“É por meio desses encontros que conhecemos mais das pessoas que foram importantes para o Daniel”, comenta Luciana Ramanzini, atriz que, entre outros papéis, vive Wanda, ativista que, segundo os autos do processo 366/70, guardados em um cofre do Superior Tribunal Militar (STM), foi uma “figura feminina de expressão tristemente notável”, que “ingressou nas atividades subversivas em 1967” e “jamais esmoreceu”.
Em um dos encontros imaginados por Daniel, ela descreve como enfrentou pesada tortura, mas não entregou nenhum nome. “A forma como Wanda conta sua trajetória cria uma empatia com o público, que descobre o que ela passou sem cair no estereótipo”, conta Luciana, que provoca emoção ao revelar o verdadeiro nome da guerrilheira: Dilma Vana Rousseff.
E, se há muitos registros históricos da ex-presidente da República, o mesmo não se pode dizer de Carlos Lamarca (1937-1971), militar desertor e guerrilheiro, um dos líderes da luta armada contra a ditadura instaurada no Brasil em 1964, morto em uma emboscada no interior da Bahia. “Praticamente não há registro de voz ou de imagem de Lamarca”, conta o ator Cleomácio Inácio, que se apoiou na biografia do guerrilheiro para construir o personagem. “Um estudo mais profundo comprova que se trata de um importante nome da história brasileira e que deveria ser mais conhecido.”
Os devaneios de Daniel durante o confinamento permitiram que Zé Henrique criasse outra bela cena, algo que não aconteceu: a despedida de Lamarca da militante Iara Iavelberg (1944-1971), por quem foi apaixonado – ele era casado com Maria Pavan, com quem teve dois filhos e que viajou para Cuba na noite do mesmo dia em que Lamarca desertou do quartel.
“Iara era uma figura única e não era um clichê: inteligente, revelava grande afetividade pelos amigos e era muito vaidosa, pois sabia de sua beleza”, comenta Lola Fanucchi, que transmite toda amorosidade da personagem em sua atuação. Mulher destemida – foi capaz de sair de um “aparelho” para cortar os cabelos nos melhores salões de Ipanema, no Rio de Janeiro -, Iara também foi assassinada em 1971, por agentes de segurança, em Salvador. “Por ser tão expansiva, ela era vista de forma estereotipada, mas, na verdade, sua personalidade é que era muito forte.”
A cena marca o encontro fictício do casal, que interpreta uma canção romântica. “Eles gostavam muito das baladas de Roberto Carlos, então criei uma música no estilo, até usando a expressão ‘amada amante'”, conta Fernanda Maia, responsável pela criação das melodias e a direção musical. Para a criação das partituras, ela se inspirou nos ritmos dos anos 1960, especialmente nos que marcaram os festivais da canção, como os de protesto. “Também busquei apoio em canções nordestinas e nas mais populares.”
A música é um importante aspecto que caracteriza Geraldo, pai de André, vivido por Renato Caetano. Militar mineiro, com uma rígida formação disciplinar, ele exibia também uma faceta artística, cantando com esmero e até participando de programas de rádio e TV. “Era a figura mais popular na vila onde moravam, em Belo Horizonte”, conta Zé Henrique. “Esse papel me faz pensar na minha ancestralidade, pois era um homem negro, que cantava, interpretava. Ele me aproxima de meu pai, do meu tio”, conta Renato.
O elenco se alimentou das informações do historiador James Green, autor da biografia de Herbert Daniel. Assistiu emocionado a um ensaio e conversou com os atores, relembrando as conversas que teve com diversas pessoas que são retratadas na peça. “Ele foi muito generoso, trouxe detalhes valiosos”, conta Fabiano Augusto, que interpreta justamente o pesquisador – em cena, ele ajuda a pontuar historicamente as cenas, cravando datas e distinguindo fatos de ficção. “Por ser estrangeiro, observei muito a forma como ele fala, e até montei um dicionário de fonemas para compor meu personagem.”
O primeiro ato de Codinome Daniel mostra a construção do guerrilheiro que esteve na linha de frente de assaltos a bancos e dos sequestros de diplomatas estrangeiros que garantiram a soltura de mais de uma centena de presos políticos que corriam risco de morte. Também o homem que, na clandestinidade, descobriu e assumiu sua homossexualidade, que era vista como um desvio pequeno-burguês, uma degeneração, uma fraqueza moral, para muitos setores das esquerdas naquele momento.
Mesmo com o cerco crescente e o extermínio físico da luta armada, ele conseguiu escapar da prisão e das torturas, exilando-se em 1974 em Portugal e, depois, na França. É esse momento que marca o segundo ato do musical, período em que conheceu Cláudio, o companheiro de quase vinte anos. “Ele esteve muito próximo de Daniel em seus últimos anos de vida, dando todo o carinho e cuidado”, conta André Loddi, intérprete de Cláudio.
Nos anos 1980, após voltar do exílio, Daniel, já contaminado, fundou um dos grupos mais importantes na assistência àqueles que vivem com o vírus do HIV até os dias de hoje, o Pela VIDDA. “Ele trouxe ideias revolucionárias para enfrentar a doença e o preconceito social, e elas ainda são válidas até hoje, como a ideia de solidariedade no combate à epidemia”, comenta James Green, em depoimento ao material de divulgação da peça.
Codinome Daniel, que tem ainda Paulo Viel no elenco, é a terceira parte da chamada Uma Trilogia Para a Vida, ao lado dos espetáculos Lembro Todo Dia de Você (2017) e Brenda Lee e o Palácio das Princesas (2021). Como fio condutor das três peças está um conjunto de discussões e pontos de vista a respeito da questão do HIV/Aids no Brasil, da década de 1980 aos dias de hoje. “Também a brasilidade, pois são obras originais criadas a partir da nossa história”, comenta Fernanda Maia.
Serviço
Codinome Daniel
Teatro do Núcleo Experimental – Rua Barra Funda, 637.
Sexta, sábado e segunda-feira, 21h. Domingo, 19h. R$ 40
Projeto contemplado na 40ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo
Até 4 de março