Espetáculo do diretor franco-uruguaio Sergio Blanco, que foi destaque em Santos e será apresentado no Sesc Vila Mariana, mostra como o luto pode também inspirar uma série de reflexões sobre a arte teatral
Por Ubiratan Brasil *
O diretor franco-uruguaio Sergio Blanco é conhecido pela auto ficção que marca suas criações. E a mais recente, Tierra, traz uma nostalgia ainda mais especial, pois apresenta a importância da figura e do trabalho de sua mãe, a professora Liliana Auyestarán, que morreu em junho de 2022, em uma unidade de terapia intensiva em Montevidéu, no Uruguai. O espetáculo foi um dos destaques internacionais do Mirada, Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, que terminou no domingo, em Santos. E terá nesta semana duas apresentações em São Paulo, no Sesc Vila Mariana.
Conhecida pela excelência em sua área, literatura, e pelo carinho com que tratava os alunos, Liliana deixou marcas profundas na formação de diversos alunos. Na peça, três deles estão representados: Célia, que perdeu o filho em um violento acidente de moto; Lucas, que matou o irmão gêmeo a golpes de machado em um acesso de raiva; e María Clara, filha de uma pessoa desaparecida durante a ditadura militar uruguaia e cujos restos mortais ainda não foram encontrados. Em comum, todos passam por um doloroso período de luto, que se torna o fio condutor da peça.
Um quarto personagem também está em cena, o próprio Blanco, que vai conduzindo a narrativa dos outros três à medida que acrescenta informações pessoais – e até brinca com o fato de ser reconhecido pela crítica como um autor que sempre traz detalhes da própria história para o palco. Mas sua dramaturgia revela-se requintada pois, além de falar sobre o luto e a forma como a existência se modifica após a morte de um ente querido, também fala sobre a representação cênica, propondo toda uma série de reflexões sobre a arte teatral e sobre o tema do olhar complexo.
E as lembranças permitem reconstruir o perfil de uma mulher que, mais que uma professora, tratava seus alunos como semelhantes. Histórias fabulosas como a do aluno que foi flagrado por ela com uma cola na mão durante a prova. Liliana pediu para ver e se surpreendeu com a qualidade das informações minimamente rabiscadas, que serviriam com auxílio para o aluno infrator. Por causa disso, ela não o reprovou.
Ou então a trajetória do aluno que dormia na aula noturna, cansado do pesado dia de trabalho. Liliana não o acordava e, ao final de uma aula, ouviu uma justificativa lindamente poética que também a convenceu a não reprovar aquele aluno: “Ao dormir, eu posso sonhar“, disse ele.
Em cena, Blanco recria o cenário escolar, com uma quadra esportiva e a escrivaninha da mãe, para entrevistar os personagens. Um telão projeta imagens fotográficas de Liliana e os quatro atores constantemente se expressam por meio de músicas, cantadas ao vivo.
“Uma vez concluído o trabalho, me sinto muito distante da história. Ela entra no campo da ficção e vejo-a com uma perspectiva mais técnica”, conta o dramaturgo em entrevista ao Sesc. “Essa ligação mais íntima acontece no momento da escrita, que é um momento de solidão. Aí sim, estou sozinho na minha mesa, oito horas por dia, ali me conecto com um mundo interior muito grande. É quase um trabalho de feitiçaria.”
“Ver a jornada de outra pessoa e como a outra pessoa se curou ajuda muito quem está passando pelo mesmo processo”, diz ele, na mesma entrevista. “O teatro é isso: mostrar, fabricar possibilidades, idealizar uma comunidade. É saudável ver outra pessoa se curar.”
Em cena, destaque para as atuações de Andrea Davidovics, Sebastián Serantes, Soledad Frugone e Tomás Piñeiro.
*O repórter viajou a Santos a convite da produção do Mirada
Serviço
Tierra
Sesc Vila Mariana. Rua Pelotas, 141.
18 e 19 de setembro (quarta e quinta), 21h. R$ 70