Escrita por Samir Yazbek e dirigida por Marcelo Lazzaratto, “O Outro Borges” é um delicado trabalho sobre a vitória do pensamento
Por Ubiratan Brasil
Ao entrar no teatro, o espectador familiarizado com a literatura logo vai identificar aquele homem sentado na poltrona, circunspecto, mãos apoiadas em uma bengala, aprofundado em suas reflexões. Trata-se do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), expoente do realismo fantástico, autor de uma das mais importantes obras do século passado. “Buscamos entender a melancolia daquele artista já próximo do fim da vida”, comenta Marcelo Lazzaratto, diretor de O Outro Borges, peça que chega no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros.
Trata-se de um espetáculo delicado, cuidadosamente criado. Escrito por Samir Yazbek, conta a história do dia em que Borges, quando se prepara para viajar para a Suíça, é informado de que sua casa (e outras da redondeza) em Buenos Aires terá de ser demolida para ampliar a rede de estações do metrô. A notícia tende a se agravar com a chegada de um engenheiro que vai oficializar a destruição.
“Nesse momento, a força da literatura de Borges começa a se impor na narrativa quando ele entende que não se trata do fim de algo, mas uma passagem”, observa Samir. “É o rito de mudança de um escritor que tem uma concepção de mundo, mais antiga, para outra diferente, mais conectada na sociedade, uma vez que o metrô será um bem comum.”
A cristalização dessa mudança acontece quando o engenheiro se revela um ex-aluno de Borges e o faz acreditar na existência do Aleph, objeto mágico que permite viajar por diversos lugares do mundo quem olha dentro dele. Trata-se do título do conto do livro que leva o mesmo nome, publicado em 1949 e considerado pela crítica um dos pontos culminantes da ficção de Borges.
Na peça, o Aleph está no meio das inúmeras estantes de livros da casa e, como na literatura, isso acentua o gênero fantástico, pois a realidade é transformada, com a vida real deslizando para contextos incomuns e ganhando significados extraordinários. E o escritor permite que a “descoberta” do Aleph seja feita por uma menina, que chega à casa naquele momento de incertezas.
“É uma jovem que não vê a literatura como intenção de vida, mas, mesmo assim, estabelece uma forte ligação com Borges – ele transmite o que é para que ela descubra o que virá a ser”, comenta Lazzaratto, criador de uma encenação delicada, simples, com a trilha sonora amparada no Réquiem de Brahms, compositor preferido de Borges, e na qual o elenco valorize a força do texto. Para isso, conta com a eficiência de André Garolli como o surpreendente engenheiro, Chiara Lazzaratto como a Jovem, Helô Cintra Castilho no papel da Mulher, alusão a Maria Kodama, que acompanhou Borges até o fim da vida.
Destaque ainda para Governanta (Luciana Carnieli) que cuida da casa onde Borges vive seus últimos dias em companhia de sua Mãe (Lilian Blanc). Enquanto a Governanta retrata a cruel face da ditadura argentina, com as Mães da Praça de Maio reclamando a devolução dos corpos de seus filhos mortos, a Mãe de Borges é o retrato do passado conservador, mais preocupada com suas perdas materiais do que com a matança provocada pelos militares ditadores.
“É essa Mãe da Praça de Maio que faz com que Borges caia na real, percebendo a crítica situação política e social vivida pela Argentina. É algo delicado pois, para combater o peronismo, ele apoiou os militares, mácula que o acompanhou até o fim da vida”, comenta Marcello Airoldi, perfeito no papel de Borges, desde o gestual nada caricato até o surpreendente revirar de olhos – o escritor começou a ficar gradualmente cego a partir dos 55 anos, o que transformou seu olhar vago em uma de suas características.
E os conflitos do Escritor com a Jovem, para que ela possa herdar e transformar o legado de o ‘Aleph’, são mediados pelo Filósofo (Dagoberto Feliz), personagem do imaginário borgeano, que encarna a presença da magia no cotidiano do escritor.
Há anos que Samir Yazbek trabalha no texto. “Comecei a escrever o texto por um convite feito pelo falecido diretor Antunes Filho, no final da década de 1980. Foi um voto de confiança dele, num autor que estava dando os seus primeiros passos. Antunes tinha o desejo de mesclar a obra de Borges com o universo de As Mil e Uma Noites, mas as pesquisas nos fizeram perceber que a obra do Borges era suficientemente rica no sentido de oferecer material para uma peça de teatro”, relembra. “Foi assim que chegamos ao conto O Aleph, do livro homônimo, como base ficcional para a dramaturgia – mas logo percebemos que não queríamos exatamente fazer uma adaptação do conto.”
Durante a reclusão obrigatória imposta pela pandemia da covid, Samir pesquisou outros textos do autor argentino, que também foram decisivos na elaboração da peça. Como o conto Borges e Eu, incluído no livro O Fazedor, de 1960. Trata-se de uma narrativa ardilosa, em que o autor traça um perfil distinto de si mesmo – mas que é ele mesmo. “Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica”, diz o texto.
“O Aleph surge como metáfora da cultura, assim como o embate com as forças do progresso que são representadas pela linha do metrô”, diz Yazbek. “A peça se chama O Outro de Borges não só para aludir ao conflito entre a persona pública do autor e a sua subjetividade, mas, sobretudo, para destacar a personagem do ‘jovem Borges’ (aqui representada por uma mulher, feliz decisão de Lazzaratto), que representa no atual contexto a possibilidade de impedir o declínio dessa cultura.”
Serviço
O Outro Borges
Teatro Paulo Autran, Sesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195. Telefone (11) 3095-9400.
Sexta e sábado, 21h. Domingo e feriado do dia 20/11, 18h. R$ 50
Até 10 de dezembro