Celso Frateschi e Zécarlos Machado vivem o argentino Jorge Bergoglio e o Papa Bendo XVI em momento decisivo para a Igreja católica
Por Ubiratan Brasil
Isolados do mundo exterior, os dois homens que detêm um grande poder revelam suas fragilidades. Na Itália, o cardeal argentino Jorge Bergoglio visita ao alemão Joseph Ratzinger, então Papa Bento XVI. Ambos têm o desejo de abandonar suas funções, mas, para o bem da Igreja católica, só um poderá fazer isso. A história tem um final conhecido, mas o embate intelectual entre eles é o grande trunfo de Dois Papas, peça em dois atos de Anthony McCarten em cartaz no Sesc Guarulhos e que, a partir de 21 de março, segue para nova temporada no Sesc Santo Amaro.
Zécarlos Machado vive Bento XVI que, naquele ano de 2013, conclui que apenas sua abdicação (a primeira de um Papa em 700 anos) poderá nortear a Igreja, tomada por uma rede subterrânea de interesses. E ele vê no cardeal argentino, papel de Celso Frateschi, seu principal rival no conclave que o elegeu, como a melhor solução. O encontro, portanto, serve para o alemão convencer Bergoglio de desistir de sua intenção de abandonar o papel de cardeal.

A peça ganhou a sua primeira montagem em 2019, na Inglaterra, baseada no livro homônimo de McCarten, que também inspirou a adaptação cinematográfica da Netflix dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles. “São dois grandes líderes que, como CEOs de empresas gigantescas, não têm interlocutores à altura quando precisam tomar uma importante decisão. A solidão, nesse momento, é completa”, diz o diretor Munir Kanaan que, de posse de um texto potente, argumentativo, conseguiu criar uma montagem cuja predominância está na palavra, mas sem se esquecer de recursos cênicos que dão mais dinamismo à montagem
Ser papa é um fardo cujo peso apenas outro papa pode entender. “Há uma frase de Ratzinger na peça que mostra isso. Ele diz: ‘O Senhor corrige um Papa nos dando o próximo Papa. Eu gostaria de fazer minha correção’. É um exercício de poder que só termina com a morte”, comenta Machado. “As sucessões papais se movem como pêndulos, de um lado para o outro conforme a tendência política daquele Papa. A Igreja é uma instituição humana, com muitas forças de interesse”, completa Frateschi.

A peça foi escrita a partir desses interesses manifestados nas ações dos dois personagens, que também inspiraram os diálogos. “O maior desafio criativo apresentado por este projeto foi especular sobre como seria um debate entre esses dois homens altamente inteligentes, íntegros, mas muito diferentes – um intelectual alemão conservador, o outro um homem do povo argentino progressista. Suas respectivas posições sobre questões-chave são conhecidas por meio de suas muitas declarações públicas, mas como seus argumentos seriam expressos em privado e se direcionados um ao outro?”, disse o dramaturgo em artigo publicado no jornal americano Los Angeles Times.
“Como reconstituir suas crenças separadas em trocas ao vivo e argumentos acalorados? Como tornar vívida a esotérica desta igreja, impregnada de medievalismos e protocolos secretos? Como tornar dramático o passado rico e variado dos homens, ambos tendo sobrevivido a ditaduras brutais? E como tornar tudo isso interessante para um público secular? Os desafios eram consideráveis, mas fiquei cada vez mais interessado pelo potencial de criar um diálogo apaixonado entre um conservador e um progressista que pudesse falar com a conversa mais ampla que grassa na sociedade em geral sobre qual desses dois campos ideológicos melhor garante nosso futuro”, continua McCarten.
Em cena, duas posições antagônicas. De um lado, um refinado teólogo representante da tradição e dos velhos costumes da Igreja. Do outro, um religioso carismático e com fama de rebelde disposto a construir pontes com as mudanças do mundo moderno. Por discordar da forma com que Bento XVI conduz a Igreja, Bergoglio pretende abdicar de suas funções. Mas, ciente de que o argentino provavelmente seria seu sucessor, o alemão conscientemente quer se afastar para permitir que a mudança aconteça.

“Em algum momento, acredito que ele fez as pazes com a ideia de um Francisco, com a necessidade de mudança, e percebeu que a aplicação de regras só tem valor moral se as regras permanecerem dignas de aplicação”, diz McCarten.
“Em cena, é como se estivessem quatro papas. Temos em segundo plano o Papa Bento XVI e o futuro Papa Francisco, que são os papas públicos, conhecidos pelos grandes eventos e cerimônias, vistos pela TV e pela internet. E temos o mais interessante, o que busquei iluminar, a intimidade desses dois homens, aquilo que não vemos”, observa Kanaan. “A possibilidade do diálogo é o que move essa história, são duas visões de vida completamente diferentes. Apesar de Bento XVI ser mais conservador, é ele quem chama Bergoglio para a conversa, que apesar de ser um homem mais aberto, chega hesitante para ter esse papo reto. São as complexidades desse encontro que conduzem o diálogo sobre a necessidade de mudanças.”
Para isso, ele conta com um cenário totalmente branco, que ressalta as cores das vestimentas dos religiosos, notadamente o vermelho. E os módulos brancos servem também como tela para a projeção de imagens que contribuem para a narrativa, como cenas de jogos de Maradona – Bergoglio é fanático por futebol. “São visões de mundo completamente diferentes, por mais que ambos sejam da mesma religião. Essa dramaturgia acaba falando de nós nesse exato momento em meio às discussões envolvendo polarização”, comenta Frateschi.
“As vozes são discordantes de Bento XVI e de Francisco, mas quando se reconhece o lado humano e se tem uma boa vontade, é possível encontrar um caminho em que a humanidade, de fato, se estabeleça. É uma peça que nos leva a um processo de avaliação desse mundo caótico atual”, completa Machado.
A peça marca o reencontro dos dois grandes atores depois de quase 40 anos – estiveram juntos pela última vez em Santa Joana, de Bernard Shaw, direção de José Possi Neto, em 1986. O elenco também conta com Carol Godoy e Eliana Guttman.
Serviço
Dois Papas
Sesc Guarulhos. R. Guilherme Lino dos Santos, 1.200, Guarulhos. Tel: (11) 2475-5550
Sextas e sábados, 20h. Domingos, 18h. R$ 60
Até 16 de março
Sesc Santo Amaro . Rua Amador Bueno, 505, Santo Amaro
Sextas e sábados, 20h. Domingos, 18h. Dias 11 e 24/4, sexta e quinta, 15h. No dia 18/4 não haverá sessão. R$ 50
De 21 de março a 27 de abril.