Atriz vive advogada pernambucana que defendeu centenas de presos políticos do Nordeste entre 1973 e 74, um dos períodos mais pesados da ditadura brasileira; solo, escrito por Silvia Gomez e dirigido por Yara de Novaes, chega ao Teatro Anchieta, no Sesc Consolação
Por Ubiratan Brasil (publicada em 3 de junho de 2025)
Desde que estreou no Rio de Janeiro, em janeiro do ano passado, a peça Lady Tempestade ganhou companheiros culturais ilustres, como os filmes Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho (ainda por estrear), na ampliação da discussão sobre as arbitrariedades sofridas pela sociedade brasileira durante a ditatura militar (1964-1985). Com André Beltrão como protagonista, Lady Tempestade chegou a São Paulo, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação.
“Tivemos outros exemplos, como o filme Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias, que contribuíram para a discussão sobre a ditadura militar”, comenta Yara de Novaes, que dirige a montagem. “Mas, nos últimos anos, percebemos que o assunto ganhou mais destaque porque vivemos recentemente a possibilidade de um golpe de Estado restituir a ditadura.”
O monólogo, escrito por Silvia Gomez, tira do obscurantismo a advogada pernambucana Mércia Albuquerque, que teve papel fundamental na luta contra a violência praticada contra presos políticos nos anos 1960 e 1970. “Essa mulher tomou uma atitude corajosa em um momento em que poucos se arriscavam”, comenta Beltrão. “Uma mulher, aparentemente comum, que salvou a vida de muita gente, e, mesmo com uma trajetória impressionante, sofreu forte apagamento.”

Tudo começou em 1964 quando Mércia, então recém formada em Direito, viu uma cena chocante nas ruas do Recife. O regime militar recém imposto decretou a prisão do militante Gregório Bezerra. Em ato de barbárie extrema, ele foi arrastado pelas ruas do Recife por soldados que incitavam a população a linchá-lo. Chocada com o que viu, Mércia chegou em casa e comunicou ao marido que iria defender aquele homem e quem mais precisasse.
A história de Mércia (1934-2003) chegou a Yara de Novaes, diretora do monólogo, quando estava no Recife rodando Zé, filme de Rafael Conde sobre o militante mineiro José Carlos Novais da Mata Machado, assassinado no DOI-CODI da capital pernambucana em 1973. Ali, soube da existência de Mércia, porque foi a advogada que conseguiu localizar o corpo da vítima, promover a exumação e a transferência para Belo Horizonte.
Interessada na fascinante história daquela mulher, Yara iniciou pesquisas e chegou a Roberto Monte, que dirige o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, no Rio Grande do Norte. Foi a ele que Octávio, marido da advogada, confiou os arquivos após a morte dela, em 2003. Além dos diários, há cartas e processos no acervo.

Empolgada com a corajosa trajetória da advogada, Yara começou a organizar a montagem e logo contou com o apoio de Andrea. Para escrever o texto, a diretora confiou em uma dramaturga que se firma cada vez mais no teatro brasileiro, Silvia Gomez.
A grande sacada da peça é não se concentrar naquele pesado período da ditadura militar, cujo golpe completa 60 anos em 2024. Assim, Andrea vive A., mulher que recebe um telefonema em uma noite. Do outro lado da linha, R., um homem desconhecido, avisa que ela receberá pelo correio os manuscritos do diário de Mércia Albuquerque.
Na verdade, R. é inspirado em Roberto Monte que de fato mandou os escritos da pernambucana para Yara e Andrea antes mesmo de publicá-los, em meados de 2023, no livro Diários de Mércia Albuquerque: 1973-1974 (editora Potiguariana). A peça, portanto, traz um diário dentro de outro diário.
“Essa ponte entre passado e presente foi um arco que se instalou em nosso sentimento no processo de criação. Alguém do presente, como nós, recebe uma convocação do passado. De repente, na escrita, o tempo verbal ficou desobediente: às vezes no passado, às vezes no presente, às vezes no futuro. Como se a forma pedida pela obra nos lembrasse que o Brasil é reincidente no esquecimento de sua história, como se a voz de Mércia chegasse para nos encontrar a todos. Uma voz fantasma no corpo de uma barqueira que nos leva a atravessar a bruma do passado”, comenta Silvia Gomez.
Com isso, a dramaturgia explora o espaço de invenção entre o documento e a ficção e a colisão entre o passado e o presente para pensar o futuro. Alternando os papeis de A. e Mércia, Andrea revela aos poucos fatos relevantes que foram esquecidos. Mércia chegou a se fantasiar de enfermeira para visitar presos internados, e ela mesma foi presa 12 vezes — em uma delas, estava sozinha em casa com seu bebê, e mandou uma mensagem em uma garrafa, presa numa cordinha, para a vizinha de baixo, pedindo para ela cuidar da criança enquanto ela não fosse liberada pelos “gafanhotos” (a alcunha que usava para chamar os militares).
A encenação de Yara reproduz o clima de tensão e medo que reinava no Brasil nos 1970, quando um simples telefonema podia alterar radicalmente a trajetória de alguém. “Acho interessante porque a Silvia captou e levou para a dramaturgia os bastidores de nossa conversa, de nossa aflição. De início, eu tive dúvidas se queria encarar aquela história tão pesada”, explica Andrea. “Pensava em desistir, mas aí falava: não, estou sendo muito covarde.”
Embora seja um monólogo, a atriz divide a cena com o filho Chico Beltrão, responsável pela criação e operação de trilha sonora, que provoca tensão na plateia com mínimos detalhes, como o abrir de uma porta ou o cantar de pássaros. E Lady Tempestade terá uma versão para o cinema, com direção geral de Mauricio Farias e direção de arte de Luciane Nicolino. As filmagens aconteceram entre janeiro e fevereiro desse ano e o longa se encontra em processo de edição.
Serviço
Lady Tempestade
Sesc Consolação – Teatro Anchieta. Rua Dr. Vila Nova, 245
Quinta a sábado, 20h. Domingo, 18h. Dia 4/06, quarta, sessão extra, 15h. R$ 70
Até 6 de julho (estreia 30 de maio)