No monólogo “Olhos nos Olhos”, dirigido por Sérgio Módena e que chega ao Teatro Santos Augusta, atriz utiliza versos do compositor para relembrar a sua história e a do Brasil
Por Ubiratan Brasil (publicada em 7 de outubro de 2025)
A atriz Ana Lúcia Torre nunca se interessou em escrever sua autobiografia ou mesmo consentiu que alguém o fizesse. A carreira no teatro, cinema e televisão bastava para credenciá-la. Uma doença hormonal, porém, cujos sinais surgiram há dois anos, limitou suas atividades a ponto de, além do tratamento adequado, Ana Lúcia decidir falar mais abertamente sobre sua trajetória. Ao lado do diretor e amigo Sérgio Módena, ela reviu momentos importantes que resultaram no monólogo Olhos nos Olhos, que estreia no sábado, dia 11, no Teatro Santos Augusta, em São Paulo.
Não é coincidência que o título remeta a uma importante música de Chico Buarque de Holanda – o monólogo é construído a partir de leituras dramáticas que a atriz faz da poesia de diversas canções do compositor. “Não canto, digo os versos de diversas canções que ajudam a reconstituir minha história”, explica Ana Lúcia, que retomou uma ideia que teve há sete anos.
Naquele tempo, por curiosidade, ela recitou em voz alta as letras de Chico e se surpreendeu. “Apesar de eu acompanhar o trabalho do Chico desde os meus 20 anos de idade, eu não conhecia as letras com a profundidade que elas têm.”

Assim, quando Módena sugeriu que fizessem um novo trabalho (juntos, eles apresentaram em 2022 uma inesquecível versão de Longa Jornada Noite Adentro, clássico de Eugene O’Neill), Ana Lúcia se lembrou daquela experiência. O encenador gostou da ideia e, juntos, passaram a costurar um roteiro baseado na poesia buarqueana. Olhos nos Olhos celebra ainda os 80 anos de vida e os 60 de carreira da atriz. O espetáculo também celebra os 40 anos da Morente Forte, responsável pela produção.
Ana Lúcia e Chico são artistas da mesma geração (ele completou 81 anos em junho), viveram e testemunharam as mesmas transformações políticas, sociais e comportamentais acontecidas no Brasil e que ainda repercutem. Durante a seleção, a dupla se maravilhou com a riqueza da obra de Chico Buarque. “Ele passou por vários momentos históricos que inspiraram suas canções. Não entendo como pode brotar tanta música daquela cabeça”, brinca ela, dizendo que a enorme extensão de títulos trouxe uma dificuldade inicial.
Suas trajetórias profissionais já se cruzaram duas vezes. A primeira foi no musical Morte e Vida Severina (1965), com trilha criada por Chico e com Ana Lúcia no elenco. Anos mais tarde, em 1989, ele compôs a canção Suburbano Coração para o espetáculo de mesmo nome, dirigido por Naum Alves de Sousa e no qual ela também estava em cena.
“Decidimos dividir o espetáculo por blocos nos quais encaixamos as canções mais apropriadas”, explica Módena, enumerando temas variados como amor (Olhos nos Olhos, Atrás da Porta, Tatuagem), política (Cálice, Apesar de Você) e sociedade (Cotidiano, Geni e o Zepelim, Meu Guri).

Um dos momentos mais impactantes da peça traz detalhes sobre um fato que Ana Lúcia sempre evitou falar, mesmo entre familiares: o período de seis dias em que ficou detida em São Paulo no DOI-CODI, o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, órgão de repressão do Exército durante a ditadura militar no Brasil.
Foi em 1973, cinco dias depois de voltar de uma temporada de quase uma década morando e estudando na Europa.
“Desembarquei no Rio e, dias depois, fui colocada em um avião até São Paulo, onde fui levada encapuzada até o DOI-CODI. Fiquei muito perturbada. Decido voltar porque amo meu país e me prendem quando chego?”, questiona.
Ana Lúcia não sofreu tortura física, mas psicológica. “Fui presa porque eles estavam fazendo o arquivo do Teatro Tuca e eu era a única do elenco de Morte e Vida Severina que ainda não tinha dado um depoimento. Fui colocada diante de vários livros com fotos de pessoas consideradas suspeitas e queriam que eu as identificasse. Como já tinham falado com o restante do elenco da peça, só reconheci aquelas pessoas. Durante aqueles momentos, eu ouvia gritos, música alta.”
No espetáculo, Ana Lúcia diz uma frase que resume bem sua trajetória: “A arte é a ferramenta da sobrevivência”. “É uma grande verdade, pois eu reinventei por meio da arte”, afirma.
Serviço
Olhos nos Olhos
Teatro Santos Augusta. Alameda Santos, 2159
Sábados, 20h. Domingos, 18h. R$ 120 / R$ 160
Até 9 de novembro (estreia 11 de outubro)
