Com direção precisa de Daniela Thomas e inspirado texto de Caetano W. Galindo, peça envolve Bete Coelho e Georgette Fadel em um embate de virtuosismos
Por Ubiratan Brasil
Em setembro do ano passado, depois de um dia difícil, o tradutor e escritor Caetano W. Galindo recebeu à noite uma proposta inusitada: a atriz Bete Coelho, com quem havia trabalhado na peça Molly — Bloom, adaptação dos trechos finais do Ulysses, de James Joyce, o convidou para escrever uma outra peça. Animado, Galindo ofereceu, cinco dias depois, três possíveis ideias para o texto.
Enquanto aguardava a definição, foi novamente surpreendido: Bete e a Companhia Irresponsável escolheram as três alternativas. Assim, depois usar referências de Emily Dickinson, Samuel Beckett, Dylan Thomas e, claro, James Joyce (em especial, Finnegans Wake), o grupo chegou à tragicomédia Ana Lívia, peça em cartaz no Teatro Anchieta do Sesc Consolação.
Difícil arriscar uma sinopse precisa: Ana precisa contar uma coisa terrível, mas Lívia não quer deixar ela falar. Lívia quer falar de uma nova peça enquanto Ana sente que chegou ao seu terceiro ato. Cada uma delas está sozinha com suas dores, seus desvios e seus medos. Cada uma tem apenas a outra. “Duas atrizes em busca de um desfecho”, explica Galindo, que alimenta ainda mais o mistério. “Ana e Lívia não se compreendem. Ana Lívia compreende as duas.” Ele lembra que, durante o processo, percebeu que as personagens ganharam autonomia, começando a dizer o que queriam, não o que ele pretendia. Com isso – e também por ser um trabalho criado em conjunto -, a peça teve doze versões.
“A peça é teatro sobre teatro. São atrizes em guerra com seus personagens, ou personagens em embate com suas atrizes. O que se sobressai é uma declaração de amor ao teatro”, observa a diretora Daniela Thomas que, desgostosa com a predominância do realismo na maioria das encenações atuais, optou por um trabalho que apresentasse a arte da atuação em seu momento pleno. “O cinema e o streaming apostam em uma encenação que não permite variações. Por isso que aqui decidimos por um teatro renitente. Aquele que entra crise, sai crise, insiste em sobreviver.”
Não se trata apenas de uma homenagem, mas de um espetáculo sofisticado que comprova justamente a enorme dimensão do fazer teatral. O inspirado texto de Galindo, por exemplo, fornece inúmeras leituras e é um fascinante jogo com o tempo: ao mesmo tempo em que vão interpretando, as atrizes lêem anotações em um caderno que mostram que o autor está escrevendo aquela peça naquele exato momento. É como um jogo praticado diante de espelhos que se refletem mutuamente. Não à toa o título inicial da peça seria Babel.
Para evidenciar a interpretação e ainda convencer o público de que está em um teatro, o cenário se resume a uma grande mesa: é possível ver as entranhas do palco, o tablado, os refletores, a parede de tijolos ao fundo. Mas a engrenagem só funciona quando as peças (texto, cenário, iluminação precisa de Beto Bruel) são manipuladas por atrizes realmente qualificadas.
Bete Coelho e Georgette Fadel (que será substituída por Iara Jamra nas sessões dos dias 17 e 24 de novembro e 7 de dezembro) têm o desafio de abrir o leque e exibir suas habilidades que, descobre o espectador, são várias. Afinal, para elas, mais que uma arte, o teatro é uma energia, uma ferramenta que ajuda a mudar o mundo. “A teatralidade delas está solta”, conta Daniela, que conta com a preciosa colaboração de Gabriel Fernandes na direção. “São verdadeiras Caixas de Pandora de repertório e encenação. Cada inflexão tem história e endereço.”
Isso porque o trabalho de destrinchar o texto em busca de caminhos cênicos é um desafio encorajador. “Não só tiramos a roupa do teatro com esse cenário da mesma forma que mostramos a vulnerabilidade dessas duas mulheres em combate”, observa Bete, uma das poucas atrizes da atualidade a entender profundamente o universo de Samuel Beckett (1906-1989), autor teatral que melhor sintetizou as relações humanas no século 20 e cujos personagens principais estão, de uma alguma forma, homenageados em Ana Lívia.
Beckett compôs sua obra em torno de uma visão da transitoriedade da vida, além de saudar o absurdo existencial com um humor característico. Com uma rara dramaticidade bem controlada, Bete revela com gestos e feições a inevitável tensão entre a tentativa de contar uma história e sua impossibilidade.
Mel Brooks e Mussum
E, para que o efeito seja pleno, é preciso a presença de uma atriz também qualificada cenicamente, mas que, no palco, seja seu antípoda. É o caso de Georgette Fadel que, com seu espírito galhofeiro, traz para história o humor de Mel Brooks, John Cleese, Mussum (exemplos dados por Daniela) e até um improvável Harpo Marx, mas totalmente falante.
“Apesar de tudo, eu gosto de seguir fielmente as marcações da direção, mesmo parecendo um improviso”, comenta ela que, ao lado de Bete, assume com prazer um dos maiores desafios do espetáculo: quando uma imita a outra nos gestos e na fala. “Nesse texto escrito com e para elas, Bete e Georgette (e também Iara) se fazem de escada umas para as outras, alternadamente, para que uma pudesse voar ainda mais longe, experimentando lugares nunca antes navegados, e a outra fosse ao mesmo tempo testemunha e adversária, em um embate de virtuosismos.”
Serviço
Ana Lívia
Teatro Anchieta. Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245. Telefone (11) 3234-3000
Sextas e sábados, 20h. Domingos, 18h. Sessão quinta-feira, 7/12, 15h. R$ 50
A atriz Iara Jamra vai substituir Georgette Fadel nas sessões dos dias 17 e 24/11 e 7/12
Até 17 de dezembro