Peça do escritor americano que estreia no Teatro Vivo usa a ironia ácida para falar da toxidade da indústria de entretenimento dos EUA
Por Ubiratan Brasil
Karen e Steve participaram de filmes de grandes bilheterias, mas vivem agora a curva descendente. Para frear a derrocada, decidem participar do longa de um renomado diretor belga que fez uma exigência: o casal precisa filmar uma cena de sexo explícito. Esse é o ponto de partida da peça The Money Shot, do dramaturgo e cineasta americano Neil LaBute, que chega ao Teatro Vivo.
LaBute é um provocador por natureza em seus trabalhos, questionando o peso de valores masculinos e femininos no relacionamento humano. A forma direta de sua escrita já lhe rendeu comentários pouco elogiosos (misógino, chauvinista, moralista), mas, de fato, ele apresenta um retrato do homem contemporâneo que, por sua natureza contraditória, consegue deixar o mundo fora do eixo.
Com direção de Eric Lenate, The Money Shot é, até o momento, a única comédia assumida de LaBute, que dispara contra a toxidade da indústria de entretenimento norte-americana. A história tem como ambiente a luxuosa mansão de Karen (Fabiana Gugli) e sua companheira Bev (Lavínia Pannunzio), que trabalha na área de pós-produção da indústria cinematográfica. Elas recebem para um jantar Steve (Fernando Billi) e Missy (Jocasta Germano), a jovem esposa dele que aspira à carreira de atriz.
“O texto tem personagens extremamente privilegiadas. Elas têm o mundo aberto à sua frente, mas são incapazes de enxergar as questões que são próprias da realidade de pessoas que não fazem parte de seu território de privilégio. Estão sempre tentando se proteger e autopromover. E estão inseridas em um processo de retroalimentação das neuroses da branquitude, que tem medo de perder seus lugares de privilégio”, comenta Lenate, no material de divulgação.
Segundo ele, a encenação está totalmente planejada para o jogo entre as três atrizes e o ator. “É um trabalho bastante calcado na verborragia do texto. São quatro personagens em cena que falam o tempo todo, tentando discutir um assunto que sempre se perde. Eles começam a fazer o desfile de egos e a situação fica cada vez mais esquisita, até chegar em um desenlace que vai fazer com que as pessoas fiquem bastante atônitas”, garante o diretor.
Sobre a peça e a arte do fazer teatral, LaBute respondeu por e-mail as seguintes questões.
A comédia é difícil porque é essencialmente uma dança verbal. Como foi seu desafio de escrever uma comédia? É quase como ciência?
A comédia é de verdade um tipo de ciência e ainda o truque é fazer com que pareça o oposto, como algo descuidado e espontâneo. é um trabalho muito duro e algo que não tentei de novo desde que escrevi The Money Shot. Uso elementos de comédia em quase tudo que escrevo, mas esta peça em particular foi a única que tive a audácia de chamar de ‘comédia’, pois durante todo o processo minha mente estava em torná-la engraçada, desde o título até a última página. É preciso muita paciência para montar uma piada, ou uma brincadeira, todos os artifícios que as comédias usam para fazer o público rir. Tive a sorte de também ter grandes colaboradores na sala de ensaio que podem pegar uma ideia e executá-la ou ter grandes ideias por si próprio, para que ajudem o script a continuar crescendo ao longo do processo. Mas para responder à pergunta: absolutamente sim, a comédia é difícil, consome tempo e é frustrante, mas é uma enorme recompensa quando funciona e, ao contrário de alguns outros elementos de drama, ela se revela imediatamente bem sucedida com a resposta do público.
Na verdade, existem falas brilhantes, mas são desconfortáveis. Como quando Missy conta a Karen seus planos de ter um filho adotivo. “Bebês negros são fofos e tudo mais, mas eu simplesmente não confio neles, quero dizer, quando eles crescerem…” Existe limite para o humor?
Quero acreditar que não há limites para um escritor, que deve buscar apenas encontrar uma forma correta de abordar qualquer assunto que deseja; dito isto, pode haver limites pessoais sobre o que um escritor diz ou faz, mas esses não são os mesmos limites que outro escritor pode sentir. Sei que não quero impor meus sentimentos a outra pessoa ou um limite à plateia sobre o que vê e ouve simplesmente com base em meus níveis de gosto e decência. Fico assustado quando alguém na plateia não gosta de alguma coisa e, portanto, quer que você retire aquilo do seu roteiro, como se fosse seu problema e não deles e/ou que deve ser refeito porque não gostam. É claro que são bem-vindos espectadores que não gostam de uma piada ou de uma peça ou de um filme, mas tentar retirar a piada da peça ou encerrar a temporada de um espetáculo ou de um filme é uma maneira perigosa de pensar ou agir.
Houve alguma história que você achou engraçada ou reveladora, mas simplesmente não foi escolhida?
Na sala de ensaio, tento fazer tudo funcionar e, se alguém tiver uma ideia melhor, então vamos nela – sou bom em cortar quando algo não funciona, mas continuo tentando até ter certeza de que algo realmente funciona. Trabalho e isso muitas vezes não está pronto até estar diante de um público. As pessoas são rápidas para dizer se algo funciona ou não, especialmente em uma comédia porque, se não funciona, não há riso e é rapidamente óbvio qual é o problema. A peça como está agora representa o melhor do que um grupo de pessoas talentosas fez para fazer outras pessoas rirem; tenho certeza que poderia voltar agora e encontrar mais lugares para adicionar piadas ou cortar uma coisa ou duas também, mas estou feliz com os resultados do que fizemos e acho que fará as pessoas rir hoje e daqui a dez anos porque é bobo e ultrajante, mas há verdade suficiente para doer um pouco também.
A peça revela também a vulnerabilidade e os medos que qualquer pessoa possa ter de que suas escolhas de vida sejam falsas. O que você pensa sobre isso?
Acho que é uma boa leitura sobre um dos temas da peça e o que você vê são vários personagens lutando ao longo da peça. Quase todos na vida temos vulnerabilidades e as pessoas famosas não são exceção – na verdade, elas podem estar ainda mais abertas a isso do que a média das pessoas por causa dos altos e baixos que experimentam trabalhando no mundo das artes. É fácil para as pessoas da indústria do entretenimento começar a acreditar em seu próprio hype e perder o contato com a realidade e de onde vêm.
Você gosta de explorar conflitos entre personagens. Como descreveria essa busca por retratar certos padrões de comportamento?
Bem, a verdade simples é que drama é conflito e então o que faço para a vida é colocar as pessoas em conflito umas com as outras de tantas maneiras interessantes quanto possível. Familiares, pessoas que trabalham juntas e até estranhos, estou sempre tentando encontrar uma forma de fazer personagens de ficção fazerem a dança uns com os outros e gravá-la da melhor forma. Não acredito que há uma boa maneira de criar um cenário forte e interessante para o palco que não envolva conflito, por isso meu trabalho é buscar os blocos de construção básicos que tenho como dramaturgo e transformá-los em algo que pelo menos parece novo e interessante (não importa o quanto você acredite que não há novas histórias para contar).
Você se vê como um escritor político ou sente que os escritores são criaturas inevitavelmente políticas?
Não me penso como um escritor altamente político, ou pelo menos não como um que lida com a política convencional de hoje. Escrevo mais sobre política sexual e de gênero e política social (como vamos viver uns com os outros). Essas são as coisas que me interessam, muito mais do que os partidos políticos ou do supremo tribunal. As pessoas me interessam mais do que as ideias e provavelmente sempre serão. Mesmo quando escrevi uma peça que tangenciou um evento político, como o 11 de Setembro, fui mais atraído pela história de duas pessoas e seus casos, do que pelos fatos que aconteceram naquele dia.
Que tipo de relação existe entre os dramaturgos e as pessoas que eles criam na página?
É uma relação muito pai-filho, mesmo quando tenta ser amigo dos personagens (ou de quem os retrata). Você os cria e depois os envia para o mundo, entrega-os para alguém que provavelmente os influenciará ainda mais (o ator) que te suga com perguntas e comentários e novas ideias sobre a vida, a história e os pensamentos de cada personagem. Você permanece soberano sobre esses personagens mesmo com um diretor se esforçando para influenciá-los e ainda tentando ser seu amigo. É isso que torna a jornada em algo estranho e agradável, repleto de ansiedade, raiva e má compreensão quanto pode ser qualquer relacionamento em sua vida.
Qual de suas peças deu mais dificuldade para escrever? E qual deu maior prazer ou orgulho?
Sem dúvida a peça mais difícil de escrever, que tentei ao menos acertar no ensaio e no palco, foi The Break of Noon, de 2009. Passei a maior parte do tempo no texto e nos ensaios reescrevendo.Mesmo assim, sinto que nunca acertei totalmente, mesmo nas duas grandes montagens que aconteceram relativamente perto uma da outra. Não tenho uma boa resposta para ‘por que’, é apenas a realidade. O maior trabalho não significa a melhor jogada. O reverso disso para mim foi provavelmente a A Forma das Coisas (2001), que era uma boa experiência profissional. Ou uma peça chamada Wrecks, que fiz com o ator Ed Harris quatro vezes e todas diferentes – foi tão divertido e completo que definitivamente se tornou o padrão pelo qual eu avalio todas as outras experiências profissionais e não sinto que quaisquer dessas peças foram difíceis de escrever ou me fizeram trabalhar mais duro pelos resultados.
O ritmo é tão importante quanto a escolha das palavras para você?
A minha escolha de palavra para escrita é influenciada pelo ritmo e vice-versa – por isso não posso falar de uma sem a outra. É o mesmo quando se trata de comédia porque uma palavra é engraçada e outra não, ou uma sílaba extra não tem graça, mas, basta tirá-la, para que o público exploda de risos. Acertar essas coisas é enormemente importante para escrever peças e, mais especificamente, escrever comédia. Adoro palavras e juntá-las, levando as pessoas a uma viagem com apenas um monte de frases juntas. Isso nunca fica velho ou cansativo para mim. Adoro meu trabalho e tenho sorte de tê-lo e eu o levo muito a sério. Por que as pessoas devem assistir ao meu trabalho em vez do de outra pessoa? Não sei, mas se esse então é meu dever, o ideal é fazer algo que realmente vale a pena.
Percebe-se em suas peças, apesar do bom humor cáustico, uma dose de perplexidade e outra de indignação com os rumos da cultura contemporânea. Você acha que haverá um motivo para sentir falta do século 21?
Acho que você está certo sobre minha indignação sobre muito do que se passa por cultura em nossa sociedade e, sim, zombo disso constantemente em meu trabalho. Tenho certeza de que é o mesmo para a maioria dos escritores em quase todos os séculos e, ainda, as pessoas claro que olharão para este século com grande curiosidade. Esse é o caminho do mundo. Há tantas coisas que amei desse século (filmes, livros, peças e pessoas) que estou feliz por ter vivido esses momentos. Será que nossos filhos terão a mesma quantidade de tempo que nós temos? Gostaria de dizer ‘sim’, mas não falo muito alto nem com qualquer autoridade. Me preocupo e também espero, pois é o que me torna humano.
Serviço
The Money Shot
Teatro Vivo. Av. Chucri Zaidan, 2460. Tel.: (11) 3430-1524.
Terças e quartas-feiras, 20h. R$ 100
Até 6 de dezembro