Na peça Pra Você Lembrar de Mim, o ator Eduardo Martini vive um jornalista e escritor de 59 anos acometido de Alzheimer precoce
Por Sérgio Roveri
Hélio é um renomado jornalista, escritor e palestrante, ou, como prefere se apresentar, um contador de histórias profissional. Cultiva uma relação obsessiva com as palavras, não apenas por elas constituírem a matéria-prima do seu ofício, mas por representarem seu principal instrumento de conexão com o mundo. Cuida sozinho da filha Bruna, desde a morte da mulher Helena, há mais de dez anos. Até que, sem qualquer aviso prévio, Hélio deixa de reconhecer a filha, a casa e a praça do bairro em que sempre caminhou. Perde o domínio do corpo e, embora reconheça que as palavras continuam habitando seu cérebro, já não sabe mais como acessá-las. Aos 59 anos e prestes a receber um prêmio por sua atuação na área de educação, Hélio é diagnosticado com Alzheimer precoce.
Composição cirúrgica do ator Eduardo Martini, 62 anos, Hélio é o personagem principal de Pra Você Lembrar de Mim, peça que estreou de maneira discreta há sete meses no Teatro União Cultural, com apenas uma sessão às sextas-feiras e, graças a um crescimento movimento de aprovação popular, tem realizado algumas apresentações extras e agora acaba de estender a temporada também para as noites de quinta.
Prêmio pela interpretação de Clodovil Hernandez
“Meu pai, um superintende financeiro com cinco faculdades no currículo, morreu de Alzheimer aos 80 anos, mas eu não quis me inspirar apenas nele para compor o personagem do Hélio”, diz Martini, contemplado no ano passado com o Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Ator pelo espetáculo Simplesmente Clô, baseado na vida do ex-apresentador Clodovil Hernandez. “O Alzheimer é uma doença presente em tantas famílias, e se revela de formas tão particulares, que achei melhor não me limitar a um único modelo de inspiração”.
Durante muito tempo, Martini, que acaba de completar 46 anos de carreira, costumava visitar uma tia recolhida a um lar de idosos na cidade de Itatiba. “Foi ali que comecei a prestar atenção no olhar vazio de muitas idosas, era um olhar já abandonado pela vida, eram olhos que já não viam. Quando eu consegui reproduzir este olhar em cena, senti que tinha entendido o personagem”, revela o ator. “Às vezes, o mergulho neste olhar é tão profundo e me leva para um lugar de isolamento tão grande que é como se eu nem enxergasse a atriz Carina Sacchelli, que interpreta minha filha Bruna. Claro que a enxergo e a ouço, mas sinto que meu personagem foi para um lugar inacessível”.
Apesar da voltagem emocional comumente associada a este tipo de tema, Pra Você Lembrar de Mim não é um espetáculo triste, graças, segundo Martini, ao texto da dramaturga Regiana Antonini e às escolhas do diretor Elias Andreato. “Logo nos primeiros ensaios, o Elias me disse o seguinte: não tenha pena do personagem, trate-o com respeito e emoção e deixe o resto a serviço do público. Não foi um conselho fácil de seguir, porque eu sou muito emotivo, choro com muita facilidade”, admite o ator.
Pra Você Lembrar de Mim é mais um capítulo na profícua parceria entre Martini e a dramaturga mineira sediada no Rio Regiana Antonini. É dela a comédia O Filho da Mãe, que permaneceu anos em cartaz e rendeu a Martini o prêmio de melhor ator no Fita – Festa Internacional de Teatro de Angra dos Reis.
Peça trata da importância do pai
“Eu fiz uma pesquisa profunda sobre o tema. O Alzheimer sempre me deixou muito intrigada, temerosa e curiosa. Acho que todos nós corremos o risco de ter esta doença, ou outro tipo de demência, pois vivemos apressados demais, estressados demais, pressionados demais”, diz a autora. “Mas eu queria, também, que a peça falasse sobre essa figura tão importante em nossas vidas, que é o pai. E, como no caso do personagem, um pai admirável, carinhoso, inteligente, um herói para aquela filha. Quis abordar como seria ver essa pessoa tão amada ir se perdendo, se tornando outra coisa”.
A autora confessa que a pesquisa científica, na qual ela mergulhou com afinco, se revelou talvez a menos interessante. “O que me interessou principalmente foi a pesquisa humana”, revela. “Entrei em blogs de filhos e filhas que sofreram essa perda. Entrei em sites de pessoas que estavam com a doença e deixavam mensagens para que soubéssemos com elas estavam lidando com isso”.
É a partir da segunda metade da peça, com o Alzheimer já definitivamente instalado naquele pequeno núcleo familiar, que se torna mais palpável a humanidade a que a autora se refere – o momento em que a filha, que sempre foi cuidada pelo pai, inverte as funções e passa a tomar conta dele. É o momento também em que a doença, não satisfeita em exterminar a memória do personagem, começa a estender suas limitações aos movimentos corporais. “Eu não tive filhos na vida real”, diz Martini. “Então eu sempre soube apenas como é o amor de filho para pai, e não o de pai para filho. Com esta peça, a partir do instante em que a personagem da Carina começa a cuidar de mim, tive a oportunidade de conhecer o que é o amor de um filho.”
Serviço:
Pra Você Lembrar de Mim
Teatro União Cultural, Rua Mário Amaral, 209, Paraíso, São Paulo. Telefone: 3885-2242
Quinta e sextas às 20h. Ingressos a R$ 40 e R$ 20.
Até 15 de setembro