Em meio a tantos musicais homenagens que se restringem às biografias, esse vem num êxtase digno da sensação de se estar entrando pela primeira vez na Sapucaí
Por Darson Ribeiro*
Como em Um Sopro de Vida, de Clarice Lispector, a impressão imediata que nos pega pelo coração no musical Clara Nunes – A Tal Guerreira, protagonizado pela afinadíssima Vanessa da Matta, é uma “Clara-Mulher-Enigma” que nos faz sair do nada em direção à palavra”, e nesse caso, ao canto. Juntada a ele. Interagidos.
Em meio a tantos musicais-homenagens que se restringem às biografias, e por isso, não acontecem, esse vem num êxtase digno da sensação de se estar entrando pela primeira vez na Sapucaí. É arrepiante. E contagiante. E ainda que em êxtases provisórios pela dificuldade que todo artista tem nesse país de começar bem na carreira – ainda mais sendo mulher – o diretor Jorge Farjalla, sem nenhum amaneiramento e oportunismo dos então ‘musicais essencialmente brasileiros’, apresenta um corte visceral elegantíssimo de uma das maiores cantoras do Brasil.
Vai beber fundo no sincretismo religioso e fundindo umbanda, kardecismo e candomblé que tanto Clara se espelhou – e rezou – transforma o palco do Teatro Renault num grande Terreiro, que ora recebe carros alegóricos, ora estandartes glorificados, ora atabaques e Orixás, ora silêncios… ora o povo – e faz reverberar imagens belíssimas, cantos-fortes que viram hinos. Viram reza. Uma reza do samba. Um samba que flutua na imensidão-branca-da-espuma-do-mar do belo cenário de Marco Lima para nos trazer ela: Clara-Iemanjá. Ou todas elas reunidas no corpo e voz da
“… tal mineira filha de Angola, de Ketu e Nagô que não é de brincadeira porque canta pelos sete cantos e não teme quebrantos porquê (…) dentro do samba nasceu, se criou, se converteu. E ninguém vai tombar sua bandeira.”…
… os espíritos estão ali, entre Bibis e pais e mães e amores e babalorixás. E nesse misturar de corpos e almas o diretor foi mais uma vez feliz em não se prender ao beabá saindo do racional.

Vanessa da Matta se entrega generosa, humilde, e nos conduz ao gozo infinito. Nada é localizado. Nada é refratário ao simbólico. E em sintonia, Cesar Pivetti alicerça essa “iluminação” em esplendores que evidenciam a beleza e qualidade dos figurinos de Luiz Claudio Silva, e nos faz admirar cada talentoso integrante. Tudo é canto. Tudo é Dança bonita de Gabriel Malo. Tudo é de extremo bom gosto, e aqui, ressalta-se a direção musical perfeita de Fernanda Maia. É uma obra de conjunto. Que deu certo.
Com dramaturgia de André Magalhães e do próprio Jorge Farjalla, Clara Nunes – A Tal Guerreira não é só um musical brasileiro. É um “Canto das Três Raças” focado e baseado no mais puro teatro ensaiado na quadra da Portela. É uma “passagem do samba” por um ângulo majestoso, onírico, que enaltece quem tem que ser enaltecido como Mané Serrador, Bibi Ferreira, Aurino Araújo, Adelzon Alves, Paulo César Pinheiro.
Em abril do ano passado completaram-se quarenta anos da morte de Clara Nunes. Tantas décadas depois sua voz ecoa feliz entre nós num poder que a música tem. E que o teatro vem coroar.
O canto de Clara Nunes foi pioneiro contra o racismo religioso como se previsse o tempo. Esse nosso de hoje, extremista, identitário e polarizado. E chato. Outro feito do musical: mesmo cônscios da vida curta da cantora, ele regozija o tempo ao invés de lamentar a morte, vai além do biológico. Como dizia Santa Catarina de Gênova (de novo Lispector, 1999, p.139) ‘quando Deus quer penetrar uma alma, abandona-a antes completamente'” (Lispector, 1999, p. 139). E, sendo assim, crítica alguma deve ressaltar um ou outro, mas, os TODOS em excelência em cada função: Badu Morais, André Torquato, Carol Costa, Bel Lima,
Renan Mattos, Caio, Gui Leal, Reynaldo Machado, Ananza Macedo, Leilane Telles, Fabio Enriquez, Paulo Viel, Jessé Scarpellini, Vitor Vieira, Edmundo Vitor, Preta Ferreira, Larissa Grajauskas, Flavio Pacato, Jade Ito, Elix, Jesus Jadh, Guilherme Gila, Silvia Lys, Thiago Brisolla, Daniel Warschauer, Abner Paul, Carlos Augusto e Pedro Macedo – que estão altamente “sincretizados na claridade”. Valendo, no entanto, ressaltar – e parabenizar – também a idealização por Vanessa da Matta – que finca também os pés num contrário ao conformismo musical e abraça ainda mais o não-comercial. Inova. E se diferencia.
PETROBRÁS DEVE (e pode) SE SENTIR ORGULHOSA POR “APRESENTAR” ESSE MUSICAL!
Clara Nunes é a cantora com maior número de discos vendidos no Brasil: mais de quatro milhões e quatrocentos mil discos. E é preciso reafirmar o valor histórico desse musical que resgata não só a cantora de sucesso, mas, a pesquisadora que também fez valer nosso folclore – incentivadora das músicas, das danças e das tradições africanas, que tanto ela ‘ornou’ em suas crenças e formação cultural numa filosofia de vida. Uma filosofia explicitada muito bem na singela e ao mesmo tempo apoteótica homenagem ao Chacrinha – talvez a mais bela já feita ao Velho Guerreiro. Viva Clara porque “quando o povo pode cantar canta de dor” … ô, ô, ô, ô, ô, ô… ô, ô, ô, ô, ô, ô…
*É Ator, produtor e diretor teatral