O mundo da maior entrevistadora do país me lembrou o mundo de Fassbinder, que não distinguia o set do quarto ou da cozinha
Por Darson Ribeiro*
A peça acontece. Há teatro nela. Do mais profícuo. Ao ponto de te fazer paralisado na poltrona – como eu fiquei – porque a história escrita por Michelle Ferreira (que não conhecia e adorei) automaticamente te joga no que Freud chama de cotransferência (diferente e muito nesse caso da catarse) ao papel da mãe, exercido muitíssimo bem por ela, Marília Gabriela. E também nesse caso, difere no processo analítico porque aqui, ela – a cotransferência – vem não como um obstáculo ao prosseguimento, mas, como alteridade. O texto chega a ser cruel muitas vezes, mas, não cai no melodrama pelos contorcionismos corpóreos e vocais quase expressionistas dela. Mesmo quando sobe o tom, gritando, ou se debulhando em lágrimas.
Mais do que o protagonismo buscado e apontado entre os dois em algumas resenhas que li, ele é da trama, do enredo. Da direção ajustada, pactuada de Bruno Guida. Gabi entende isso. E, internaliza isso. Assim como Theo. E trocam, e contracenam. E se amalgamam. Mãe e filho. Filho e mãe. Ator e atriz. Atriz e ator. Personagens. A Última Entrevista de Marília Gabriela terá três sessões no Teatro VillaLobos, na sexta-feira, dia 29 de novembro, às 20h, e no sábado, dia 30, às 17h e às 20h.
Os dois debocham criticando e ironizando o “teatro contemporâneo” onde tudo pode… e aqui também ele – o contemporâneo, poderia. Mas, nada de extravagante, vulgar, exagerado ou desnecessário há. Porque há “o conjunto da obra” numa estética simples, mas, arrojada. E ele fala mais alto.
Sinceramente me assusta até agora não ter saído uma crítica profunda about it, ressaltando a coragem da maior entrevistadora do país em se expor tanto. E tanto, e tanto, que a nós, incomoda. No bom sentido. E, para o grande público, ainda que identificando-se como mães ou pela homossexualidade irrompida, o incômodo é suplantado quase que, preterido pelo midiático da atriz. E de novo a peça mostra a que veio porque “cutuca”, “provoca” utilizando-se de um recurso psicanalítico embutido no texto como muito pouco vemos.
O mundo da maior entrevistadora do país me lembrou o mundo de Fassbinder, que não distinguia o set do quarto ou da cozinha. Ou da sala de jantar. E se comparados – é esse ângulo que dói. Como fazia doer também o “antiteatro” dele – um dos maiores cineastas dos últimos tempos. Um ângulo da direção que pôs Marilia Gabriela no foco sem por. O foco dela já é natural. Convenhamos. E ele acertou nisso. Deixou pro Theodoro os complementos cênicos que são super bem-vindos, incluindo gritos, acessos esquizofrênicos e de fúria, lavação de roupa… e ela, bem ela, acertadamente expõe seu erro como mãe, como se num mito trágico.
E isso é doloroso. E impecável. Porque mesmo visivelmente influenciada pelas ideias e memes ridículos de uma Marília Gabriela que ela não quer mais ser, é muito mais catártico quando vemos através dessa mulher digamos, de mesmo nome – Marília Gabriela – a possibilidade de a gente se servir dos sentimentos e de explorá-los no interior desse sistema falido em que vivemos (emocional, midiático e funcional). E, servindo, Theodoro vai buscando aliados naquele público inconsciente do que vivem e do que veem ali à frente – fazendo de um tudo pra resistir – e brigar – com seu Édipo. Não aceita. Fica claro isso. Quer novas possibilidades, mas, sem passar pela elaboração, e também deixando claro a diferença do entendimento por conta da experiência que a idade nos dá.
Quando cantam Here Comes The Rain Again (here comes the rain again/Falling on my head like a memory/Falling on my head like a new emotion… talk to me, walk with me, like lovers do…) … é quase apoteótico no sentido que mencionei de Fassbinder – você não sabe se estão num karaokê ou realmente no set da “última entrevista” do mito-marília-gabriela, o que para ela, é essa a opção. E é lindo.
*É ator, diretor e produtor