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“Selvagem”, de Mike Bartlett, questiona o nosso Big Brother de cada dia

Sinopse

Sob direção de Susana Ribeiro, peça do dramaturgo inglês trata de monitoramento digital e falta de conexão com o mundo real

Por Dirceu Alves Jr.

Conhecido por radiografar aflições contemporâneas, o autor inglês Mike Bartlett teve, entre outras, as peças Contrações, Bull e Love, Love, Love montadas no Brasil. Com Selvagem, que estreia no sábado, 23, no Sesc Ipiranga, o dramaturgo entrou mais fundo na realidade e buscou inspiração em um fato verídico. Em 2013, o ex-técnico da CIA Edward Snowden acusou o governo dos Estados Unidos de usar programas de vigilância para espionar a população através de servidores de empresas como o Google, Facebook e Apple. Quando a bomba explodiu, Snowden já estava longe, em Hong Kong, temendo por sua segurança.

Para criar a ficção, Bartlett abraçou a velocidade comum ao espalhamento das informações. Em 2015, o texto ganhou ponto final e, no ano seguinte, entrou em cartaz em Londres. O ator e produtor paulista Ricardo Henrique, de 34 anos, conheceu a obra em 2018, enquanto pesquisava a dramaturgia do autor. “A peça traz questões que estão abertas até hoje, dez anos depois da denúncia, como a espionagem em massa e o fato de a sociedade aceitar essa situação, cedendo de bom grado informações pessoais em sites e redes sociais”, afirma ele. “Afinal, para a gente existir nesse mundo é preciso obedecer ao desenvolvimento tecnológico e às imposições do mercado.”  

O protagonista criado por Bartlett, vivido por Henrique, não se chama Edward, mas Andrew, que, depois de revelar o esquema de vigilância mantido por um país poderoso, tranca-se em um quarto de hotel para fugir de represálias. O confinamento é interrompido por um homem e uma mulher (interpretados, respectivamente, por Rodrigo Bolzan e Erika Puga), que oferecem ajuda, porém, não revelam suas identidades. Em um mundo em que ninguém sabe quem é quem de fato, Andrew entra em crise com a dúvida de que a dupla pode ser seus salvadores ou algozes. 

Erika Puga, Ricardo Henrique e Rodrigo Bolzan em Selvagem. Foto Caio Oviedo

Falar do universo digital de forma humana é difícil. Henrique, no entanto, garante que a sensibilidade de Bartlett contribuiu para que ele criasse um protagonista conflituado entre dúvidas existenciais e afetivas. E foi justamente isso que encantou Susana Ribeiro, de 53 anos, ao aceitar o convite para a direção. A atriz carioca, uma das fundadoras da célebre Cia. dos Atores, junto de Enrique Diaz, Gustavo Gasparani e Drica Moraes, entre outros, mudou-se para São Paulo em 2017 com marido, filha, gato e muita vontade de trabalhar na cidade, como ela mesma diz. Encenadora bissexta, Susana tinha acabado de dirigir na cidade o musical Rent, com Thiago Machado, Myra Ruiz e Diego Montez, e vinha embalada pelo sucesso de Conselho de Classe, peça que comandou em 2013, em parceria com Bel Garcia (1967-2015), dentro da Cia. dos Atores. 

Susana comenta que talvez ela e Bel tenham abraçado a direção de Conselho de Classe por ter sido um projeto pensado para ser realizado pelas mulheres do grupo junto de um elenco totalmente masculino. A demora para assumir uma posição de comando pode ser relacionada a um machismo velado? “Não, não sei, a Cia. dos Atores tem uma história bastante própria, com muitos homens, todos grandes artistas, então por isso deve ter demorado mais para a gente fazer uma direção mesmo”, reflete.

A atriz e diretora acredita que nos últimos 15 anos ficou naturalizado o artista escrever, interpretar e dirigir, muitas vezes os próprios textos. “Não era tão comum assim saltar de uma posição para outra”, comenta. Ela mesma tem uma dramaturgia pronta para sair da gaveta. Trata-se de Sonhei com Você, uma comédia antirromântica, sobre o encontro de uma fisioterapeuta de 53 anos e um cineasta de 28. “Queria falar de pessoas de idades e mundos completamente diferentes que se cruzam e descobrem a possibilidade de estabelecer afinidades”, antecipa.

A diretora Susana Ribeiro com os atores da peça Selvagem Ricardo Henrique, Erika Puga e Rodrigo Bolzan. Foto Caio Oviedo

Esta é uma questão que faz Susana voltar a pensar em Selvagem. “Como é bom estar junto, pensar junto, só conhecia a Erika e o Bolzan através de amigos comuns, de festas, e estou adorando essa proximidade”, comenta. Para ela, as pessoas não entendem os prejuízos desta falta de conectividade real que virou regra. Na concepção do espetáculo, a diretora, porém, foge desta tecla tão batida do domínio tecnológico no nosso cotidiano. Ela optou por questionar se existe algum benefício no colapso deste modelo e o quanto perdemos do traquejo para retomar conexões mais orgânicas nos últimos anos, principalmente depois da pandemia. “Para não ceder à paranoia, penso que o primeiro passo é a gente habitar o nosso próprio mundo, ser feliz com as relações que criamos e, nisso, o teatro é importante porque naturalmente artistas e público saem de casa com o desejo de uma conexão real.”

Coerentes com a ideia, Henrique e Susana definem Selvagem como um espetáculo de estrutura portátil, que poderá viajar com facilidade para qualquer canto. “A montagem londrina tinha uma cenografia grandiosa, o palco girava, as paredes desapareciam, tentamos encontrar um modo mais realista de mostrar esse quarto de hotel”, conta Ricardo. A diretora quer furar bolhas, despertar o interesse de jovens e de um público da área de tecnologia, por exemplo, que pouco frequenta os teatros. “A questão é como convencer estas pessoas de que elas podem gostar da peça”, indaga. “Talvez seja preciso voltar ao que era feito no passado, visitar universidades, instituições, promover bate-papos nas empresas, partir para a conexão real e não ficar à espera da divulgação nas redes sociais.” 

Serviço

Selvagem

Teatro do Sesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga.

Sexta e sábado, 20h; domingo e feriado, 18h. R$ 40.

Até 22 de outubro.

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Ficha Técnica

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Serviço

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