Peça mais polêmica de Nelson Rodrigues, censurada por duas décadas, ganha encenação do diretor que inaugura o Teatro Estúdio, nos Campos Elíseos
Por Dirceu Alves Jr.
Em 1943, o dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) conheceu a consagração com a peça Vestido de Noiva, que, sob a direção de Ziembinski (1908-1978), é considerada o marco inaugural do teatro brasileiro moderno. Criou-se uma curiosidade natural em torno daquele que seria o seu próximo texto, mas Álbum de Família, escrito em 1945 e censurado no ano seguinte, só ganharia o palco em 1967, em montagem dirigida por Kleber Santos. “Incesto demais”, “insistência na torpeza”, “incapacidade literária”, “falta de um diálogo nobre”, “morbidez” e “imoralidade” foram algumas justificativas para a longa proibição.
O diretor Jorge Farjalla, de 45 anos, admite que até o começo da década de 2000 desprezava as peças de Nelson Rodrigues. Começou a lê-lo pelas “tragédias cariocas”, que incluem, entre outros clássicos, A Falecida, O Beijo no Asfalto e Toda Nudez Será Castigada, e não achou tanta graça. Foi só ao descobrir Álbum de Família, em 2005, que se abriu ao chamado “teatro mítico” rodriguiano, formado ainda pelas peças Anjo Negro, Doroteia e Senhora dos Afogados, as duas últimas vistas em São Paulo, sob a sua direção, em 2017 e 2018. “O Nelson vai lá no útero e produz uma obra grotesca e poética que marcaria todas as suas peças míticas”, justifica.
A visão de Farjalla para Álbum de Família pode ser conhecida em São Paulo a partir deste sábado, 6, em espetáculo que inaugura o Teatro Estúdio, na Rua Conselheiro Nébias, 891, nos Campos Elíseos. Trata-se de um espaço multiuso de 242 metros quadrados, cinco metros de pé direito, capaz de se adequar aos objetivos de cada encenação. A nova casa de espetáculos, idealizada pelos atores Alexandre Galindo e Mariana Barioni, trabalha com uma capacidade que pode acomodar entre 140 e 220 espectadores em arquibancadas ou cadeiras móveis, de acordo com a necessidade da peça.
No caso de Álbum de Família, a encenação é feita em um corredor, e o público se acomoda em uma arquibancada que o deixa cara a cara com os atores. “Essa peça é uma denúncia, fala de sistema patriarcal, abuso sexual, pedofilia e vivemos esses horrores de perto até hoje”, afirma Farjalla. “Por isso, proponho essa proximidade, o meu lance é ligar o texto ao teatro da crueldade do francês Antonin Artaud (1896-1948) para provocar as pessoas.”
A mais censurada das peças de Nelson é ambientada em uma fazenda do interior de Minas Gerais na década de 1920. É lá que vivem o casal Jonas e Senhorinha (interpretado por Alexandre Galindo e Mariana Barioni), exemplo de moral e devoção religiosa, e os quatro filhos, Guilherme (papel de Daniel Marano), Edmundo (Iuri Saraiva), Nonô (Agmar Beirigo) e Glória (Fernanda Gidali).
Na intimidade do lar, porém, a família vive enredada em uma teia de perversões e relacionamentos incestuosos. Jonas alicia garotas menores de idade para suprir o desejo nutrido por Glória, que não fica indiferente ao pai e ainda provoca o amor de Guilherme, o irmão mais velho. O segundo dos filhos, Edmundo, é apaixonado pela mãe, e a própria Senhorinha viu Nonô, o caçula dos garotos, desatinar depois de se relacionar sexualmente com ele, que, desde então, só anda nu pela fazenda. O elenco se completa com Helena Cury, Jullia Leite, Lakís Farias, Lara Paulauskas, Lídia Engelberg e Roberto Borenstein.
Como encenador de personalidade forte, Farjalla reforça as simbologias para oferecer leituras pouco óbvias. Para ele, a terra vermelha do cenário representa o útero, enquanto o ritual do banho cumprido pelos personagens promete a purificação da família, tanto no âmbito do profano como no sagrado. “Só que quanto mais banho eles tomam, mais sujos vão ficando por causa da lama”, explica.
Farjalla é goiano de Catalão, mudou aos 18 anos para a mineira Uberlândia, onde fez faculdade e, aos 26, chegou ao Rio de Janeiro. Desde 2021, vive em São Paulo. Esta é a sua terceira montagem de Álbum de Família e ele garante que cada uma ganhou visões diferentes.
A primeira foi junto aos alunos da Universidade Federal de Uberlândia (MG), quando, recém-formado, em 2005, conheceu o texto através da atriz Claudia Miranda e ficou “enlouquecido” por Nelson. Em 2008, voltaria a encarar a obra em uma montagem no Solar de Botafogo, no Rio, que pouco repercutiu e se, na versão anterior, ele tinha subido ao palco como Nonô, desta vez assumiu o papel de Jonas. “Esta é a primeira vez que não apareço como ator”, conta.
O artista se firmou um dos mais profícuos diretores brasileiros da última década. Além das rodriguianas Doroteia e Senhora dos Afogados, ele se saiu muito bem na remontagem de O Mistério de Irma Vap, com Luís Miranda e Mateus Solano, e em Brilho Eterno, adaptação do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, protagonizada por Reynaldo Gianecchini. Dirigiu ainda shows das cantoras Ana Carolina e Vanessa da Mata.
Nos últimos meses, Farjalla se divide entre os processos de Álbum de Família e do musical Clara Nunes – A Tal Guerreira, que estreia em 2 de agosto no Teatro Bravos, em Pinheiros, e traz Vanessa da Mata no papel da cantora. “Se eu estivesse em Nova York, diria que o que mais gosto é de transitar da Broadway ao off do off-Broadway, como tenho feito agora, com a mesma dedicação e seriedade”, diz. “Não pego texto e saio reproduzindo por aí, meus projetos são ensaiados por três ou quatro meses.”
Serviço
Álbum de Família.
Teatro Estúdio. Rua Conselheiro Nébias, 891, Campos Elíseos.
Sexta e sábado, 20h. Domingo, 18h. R$ 80.
Até 18 de agosto. A partir de sábado (6).