Texto da holandesa Lot Vekemans, inédito no Brasil, vai além da morte e, segundo os artistas, trata da incapacidade de lidar com perdas, erros, medos e desejos
Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 28 de abril de 2024)
Um homem e uma mulher se reencontram em um cemitério depois de 10 anos separados. Entre tantas dores vividas, eles se defrontam com uma das mais tristes, remover o corpo do filho enterrado ali. Sob a direção de Eric Lenate, Veneno é a primeira encenação brasileira do texto da dramaturga holandesa Lot Vekemans, que, protagonizada por Cléo De Páris e Alexandre Galindo, estreia nesta segunda, 28, no Teatro Estúdio, nos Campos Elíseos.
O luto nunca foi superado. O ex-marido, de alguma forma, segue adiante, percorre um caminho próprio, apesar da melancolia. Ela se afundou na amargura, ficou paralisada, como se tivesse morrido junto da criança e, depois do fim do casamento, não enxergasse sentido em existir. Lot Vekemans, de 60 anos, é uma das mais celebradas autoras europeias contemporâneas, e Veneno toca em um dos grandes tabus da sociedade ocidental, a morte.
Galindo descobriu a obra através de um amigo, o ator e diretor Cesar Augusto, que teve contato com a dramaturgia em um trabalho realizado entre artistas brasileiros e holandeses. “Não há maniqueísmos na forma em que a autora coloca os personagens para viver o seu luto”, diz ele, que mostrou a peça para Lenate em 2021. “No começo, eu me perguntava que direito temos de julgar como o outro vive o luto e a resposta era nenhum, mas, agora, enxergo no texto camadas mais profundas dos sentimentos humanos e da habilidade ou não de lidar com perdas, erros, medos e desejos.”

É justamente a incapacidade da personagem de não seguir adiante o que mais sensibiliza Cléo e a torna imperfeita, real e rica na hora de representá-la. A mulher trava uma batalha silenciosa entre a vontade de viver e o fato de não conseguir abandonar o passado. Ao mesmo tempo que tem raiva do ex-marido, sente falta dele. “Dez anos se passaram, e ela recusa o esquecimento como forma de respeito ao amor que sentiu, tanto pelo filho como pela vida que perdeu junto com ele”, comenta. “Existe uma linha tênue entre o que é amor, mágoa, ódio e saudade e essa mistura de sentimentos mostra que a personagem não é vítima ou culpada, mas uma mulher cheia de contradições.”
Lenate, que também assina a cenografia e a iluminação, criou uma ambientação sóbria que coloca os protagonistas em uma sala contígua aos espaços em que se velam os mortos nos cemitérios. É um espaço limpo, sem muitos elementos e o desenho de luz é feito pela movimentação da dupla protagonista. “Pode parecer uma encenação seca, sem artifícios, que prioriza os diálogos, só que é esta tentativa de reconexão entre os dois personagens e de sublimação da dor que que vai tocar as pessoas que assistirem ao espetáculo”, afirma o diretor. “A perda de um filho não é entendida como natural na sociedade contemporânea, e o público deve se surpreender com o jeito imprevisto e bonito que as coisas acontecem.”
Galindo conta que até hoje não atravessou o drama de vivenciar a dor por alguém muito próximo, como pais ou irmãos, por exemplo. Sabe, porém, o que representa perder gente importante em vida, amores ou amigos, que, por um ou vários motivos, deixou de fazer parte de sua história, e, neste caso, também há o luto. “A peça, hoje, me pega neste lugar de perdas de pessoas que ainda estão vivas e da nossa incapacidade de lidar com isso também.”

Uma coisa é certa, todo mundo sabe que, de acordo com o ciclo natural, quem nasce um dia vai morrer. O fato, entretanto, é que raras pessoas se mostram preparadas diante desta situação. Há dois anos, Cléo perdeu o pai, Danilo, que tinha 80 anos, e confessa que se sente um pouco mais sozinha no mundo. “O desafio não é esquecer ou superar, mas aprender a caminhar convivendo com aquela falta, deixando que a dor vire saudade, gratidão, uma memória boa”, observa. “Eu sigo meu caminho e, de algum modo, meu pai segue comigo.”
Lenate não tem filho e seus pais estão vivos. A sua experiência com uma grande perda vem justamente de umas das relações mais controversas que teve: o diretor Antunes Filho (1929-2019), o responsável por sua formação artística. Lenate chegou ao CPT (Centro de Pesquisa Teatral), coordenado por Antunes no Sesc Consolação, em 2005, aos 22 anos. Por lá, adquiriu prática de ator, estreou como encenador, em 2008, com o celebrado espetáculo O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, e saiu brigado com o mestre em 2010 para nunca mais retomar a convivência.
“O que causa desestabilidade na morte é o desaparecimento, de repente, aquela pessoa não está mais por perto”, reflete ele, aos 42 anos. “Nestes quase 10 anos de rompimento, foram várias as minhas tentativas de reatar sem sucesso, fiz tudo o que pude e isso me deixa em paz, mas era bom saber que o homem que despertou a minha paixão pela arte estava ali.”
Serviço
Veneno
Teatro Estúdio. Rua Conselheiro Nébias, 891, Campos Elíseos
Segunda a quarta, 20h30. R$ 80
Até 28 de maio (estreia 28 de abril)