Espetáculo, que chega ao Núcleo Experimental, trata de sistemas abusivos em textos como “Carta ao Pai” e “Comunicação a uma Academia”
Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 22 de maio de 2025)
No ano passado, o diretor paulistano Cesar Ribeiro abordou o terror dos regimes ditatoriais em dois espetáculos, Dias e Noites de Amor e de Guerra e Prontuário 12.528. O primeiro, lançado em março, recuperou as memórias de exílio do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), enquanto o outro, em outubro, dramatizou documentos que comprovam o totalitarismo no Brasil em cinco séculos.
A intensa atividade ganha sequência com Trilogia Kafka, que estreia nesta sexta, 23, no Teatro do Núcleo Experimental, adaptando textos do escritor checo Franz Kafka (1883-1924), com os atores André Capuano, Helio Cicero e Pedro Conrado no elenco. O que pode parecer uma volta ao teatro do absurdo, inspiração das releituras de Ribeiro para as beckettianas Esperando Godot (2017) e Dias Felizes (2023), não se prende a qualquer rótulo. “Este espetáculo continua na mesma linha do autoritarismo, porque Kafka aborda a violência estrutural e cultural”, justifica o encenador, de 54 anos. “Todas as peças são sobre sistemas abusivos a partir da perspectiva urbana, que é meu campo de visão.”

Trilogia Kafka, na verdade, traz quatro textos. Na abertura da montagem, Ribeiro criou uma espécie de prólogo que apresenta o conto Diante da Lei (1915), sobre um homem (interpretado por Cicero) que chega às portas da justiça e tem o acesso negado sucessivas vezes por um guarda (papel de Capuano). O agente narrativo, figura constante nas dramaturgias de Ribeiro para conduzir as histórias, é representado por Conrado.
O primeiro texto oficial da trilogia é Um Artista da Fome (1922), que traz Capuano como um performer cujo trabalho é jejuar publicamente depois que uma mudança cultural desvalorizou o seu ofício. Neste quadro, Cicero é o agente narrativo, e Conrado participa como um inspetor. “É a perspectiva de um cara que esteve em voga em um momento e passou a ser marginalizado”, explica Ribeiro. “Como em Diante da Lei, temos a figura do oprimido e do opressor, só que, neste caso, o opressor virou o oprimido.”

Monólogo de força imagética, Comunicação a uma Academia (1917) traz, a seguir, Conrado no papel de um chipanzé transformado em humano e relata a sua metamorfose diante de uma banca examinadora. Por fim, o clássico Carta ao Pai, que revela uma correspondência de Kafka jamais entregue ao progenitor, ganha a cena protagonizado por Capuano com toques de liberdade criativa na conclusão. “A escrita da carta pressupõe a voz paterna e presentificamos isto em cena através do Helio Cicero que, no final da peça, aparece uma mesa ao lado de um outro filho, feito por Pedro Conrado”, antecipa o diretor.
Em tempos de um cuidado quase absurdo dos artistas para não entregar spoilers, Ribeiro, com sua personalidade inventiva, tem certeza de que a verdadeira surpresa só se revela depois que toca o terceiro sinal. Para surpreender o público com o que realmente importa, ele não mede esforços e sempre dedicou longos meses de ensaios antes de considerar um espetáculo pronto. A quantidade de compromissos dos últimos tempos, resultado de um amadurecimento profissional e de constantes contemplações em editais de incentivo e fomento, levou o diretor a rever seus processos sem abandonar a dedicação.
Trilogia Kafka teve a dramaturgia construída em um mês e levou mais dois para ser levantada junto ao elenco. Para isso, Ribeiro chega à sala de ensaios com a ideia de encenação pronta, o texto rubricado para os atores e as indicações de cenografia, figurino, iluminação e maquiagem sugeridas para a equipe criativa. “A partir do resultado do edital, eu começo a pensar na estética do espetáculo e na adaptação de linguagem, que, neste caso, vem da literatura e passa a ser teatro”, diz. “Assim, nos ensaios, foco nas interpretações porque a fala tem muito de musicalidade e recrio com os atores a escrita teatral.”

Dando sequência à fase profícua, o encenador começa em julho os ensaios de Projeto Clarice, um recorte sobre a escrita de Clarice Lispector (1920-1977) inspirado em sete de seus textos, entre eles O Ovo e a Galinha, Menino a Bico de Pena e A Quinta História. O elenco, formado pelas atrizes Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann, sobe ao palco no fim de setembro. Aliás, Clara e Mariana já conversam com o encenador sobre outra peça de origem literária, calcada nos livros da polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012), sem previsão de montagem.
Terceira parte da trilogia iniciada com Dias e Noites de Amor e de Guerra e Prontuário 12.528, a peça Infância Roubada talvez seja a obra mais ambiciosa de Ribeiro e promete ter um alcance bastante amplo. Trata-se de uma dramaturgia que pretende mostrar o quanto o regime militar afetou a vida de crianças e adolescentes com base em depoimentos de filhos de presos e perseguidos políticos. O espetáculo, com Cicero, Conrado, Clara, Magali e Mariana, além de Marat Descartes, estreia em São Paulo em 2026. Depois, segue para o Rio de Janeiro e circula por outras onze capitais, um circuito que colocará o nome do artista em evidência nacional.
“Olha, eu dirijo teatro desde 1995, mas somente com Esperando Godot, em 2017, senti que tinha chegado a um lugar de satisfação e, então, comecei a correr atrás dos editais para a viabilização e realização dos meus trabalhos”, conta. “Não sei se o jogo virou para mim, o que posso dizer é que existe uma pesquisa de linguagem e atuação e, agora, consigo estabelecer uma continuidade.”
Serviço
Trilogia Kafka
Teatro do Núcleo Experimental. Rua Barra Funda, 637, Barra Funda
Sexta, sábado e segunda, 20h; domingo, 19h. R$ 40
Até 30 de junho (estreia 23 de maio)