O monólogo, que estreia no Auditório do Sesc Pinheiros, celebra a artista que saiu de cena precocemente, mas defendia ideias pertinentes até os dias atuais
Por Dirceu Alves Jr.
Glauce Rocha (1930-1971) é uma daquelas atrizes que habita o imaginário brasileiro. Estrela dos palcos na década de 1960, ficou eternizada em filmes como Terra em Transe e A Navalha na Carne e teve pouco tempo para firmar presença na emergente televisão. Desapareceu precocemente, da mesma forma que Cacilda Becker, Leila Diniz, Lilian Lemmertz e Dina Sfat, vítima de um enfarte, aos 41 anos, cansada de uma vida intensa de trabalho – afinal, não costumava recusar papéis – e preocupações com o panorama político.
Desde o fim do ano passado, o público ganhou uma nova chance de descobrir a personalidade da artista com o espetáculo Glauce, protagonizado por Débora Duboc. O monólogo, escrito por Leonardo Netto e dirigido por Debora Dubois, estreia nesta sexta, 5, no Auditório do Sesc Pinheiros, depois de elogiada temporada carioca. Em cena, as ideias de uma mulher condizente com o seu tempo que, mais de cinco décadas depois, se mostra absolutamente contemporânea.
“Revendo vídeos percebi que sua atuação já era bastante moderna para a época”, comenta Dubois. “Mais que isso, porém, Glauce levantava questões pertinentes aos dias de hoje, como o feminismo, a repressão política, a briga dos artistas por espaço e, inclusive, a importância de fazer televisão para levar público ao teatro.”
O ponto de partida da dramaturgia de Netto vem de uma história real e intrigante. Na madrugada de 12 de outubro de 1971, Glauce, hospedada na casa de sua irmã, em São Paulo, acordou com o telefone tocando e ouviu a mensagem de uma estranha voz feminina: “Alguém nesta casa vai morrer, a morte ronda este local”. Em uma ditadura militar que atingia o auge da violência, o recado pode ter muitas camadas, inclusive políticas, já que a atriz era uma militante incansável. O fato é que, no começo daquela noite, Glauce sofreu uma parada do miocárdio, igual a sua mãe, falecida um ano antes.
Como protagonista, Débora Duboc buscou em sua mente um lugar mítico para Glauce, aquele mesmo que é habitado por Cacilda Becker (1921-1969), outra estrela que muito se admira, mas praticamente não deixou registros audiovisuais. A principal base de inspiração veio das participações da artista no cinema, e Duboc ressalta o filme Um Homem sem Importância, dirigido por Alberto Salvá em 1970.
Uma das cenas deste longa foi vista e analisada por Duboc pelo menos 70 vezes em busca da essência da intérprete. “A personagem dela é uma mulher separada que mora com os pais e trabalha de secretária em uma empresa em que o protagonista, representado pelo Oduvaldo Vianna Filho, vai procurar emprego”, descreve. “Ela o convida para jantar em sua casa e, na cena seguinte, tem uma transa entre os dois na cozinha que é a coisa mais linda, não se ouve um gemido, só o barulho da água da torneira, impressionante.”
Para Duboc, Glauce era o tipo de artista que acreditava na inteligência do outro, não entregava nada mastigado ao espectador e isso nada tem a ver com minimalismo ou economia de recursos. “Ela acreditava na capacidade de o público ficcionar e, quem sabe, até contracenar com ela”, justifica. Como diretora, Dubois fugiu de qualquer mimetização da personagem, mais preocupada em apresentar algo próximo da alma de Glauce, dispensando a semelhança física. “Quem está em cena é a Débora Duboc, que não precisou pintar o cabelo de preto ou emagrecer, porque Glauce era um palito”, conta a encenadora. “A nossa proposta é o público enxergar uma atriz capaz de criar uma terceira imagem.”
O projeto de levar as memórias de Glauce Rocha ao teatro nasceu em 2021 por iniciativa da atriz Françoise Forton (1957-2022) e de seu marido, o produtor Eduardo Barata. Françoise viveu uma estreia ligação com a intérprete no final da década de 1960. As duas se conheceram em Brasília, e ela era ainda criança.
Aprovada para o filme Marcelo Zona Sul e menor de idade, Françoise teve Glauce como tutora quando se mudou para o Rio de Janeiro e, a partir da convivência, a iniciante entendeu que seu futuro era a carreira artística. Françoise é outra profissional dos palcos e das telas que se foi cedo, em janeiro de 2022, e, mesmo abatida por um câncer, realizou leituras do texto encomendado a Leonardo Netto que montaria assim que se recuperasse.
Duboc, mais uma vez, reafirma que não é apenas Glauce. No palco, ela é Cleyde Yáconis, Lilian Lemmertz, Dina Sfat e Françoise Forton, atrizes que teve a chance de aplaudir e ajudaram a desenhar a sua postura cênica. “O meu gesto foi construído por elas, grandes mulheres, de gerações anteriores a minha, de quem fui absorvendo detalhes e admirando, algo que parece não acontecer com os jovens artistas, que se focam mais no presente e esquecem do passado”, compara Duboc.
Em paralelo ao monólogo Glauce, Duboc integra o elenco do O que nos Mantém Vivos?, junto de Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas, recém levado ao Rio de Janeiro e visto no Festival de Curitiba essa semana. O espetáculo é formado por fragmentos de peças clássicas do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), entre elas Santa Joana dos Matadouros, defendida por Duboc.
“Quando descobri que Glauce, pouco antes de morrer, planejava montar esse texto, eu me senti como se estivesse concretizando o seu sonho”, declara, emocionada. “Eu interpreto Santa Joana nestes últimos dias não só como um trabalho, mas, para mim, é mais um ensaio em busca de Glauce para a temporada paulistana.”
Serviço
Glauce.
Auditório do Sesc Pinheiros. Rua Pais Leme, 195, Pinheiros.
Quinta a sábado, 20h. R$ 40
Até 4 de maio. A partir de sexta (5).