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“A Falecida” ainda impressiona, sete décadas depois de ser escrita por Nelson Rodrigues

Sinopse

A atriz Camila Morgado interpreta Zulmira, a mulher oprimida que sonha com um enterro de luxo, em encenação dirigida por Sergio Módena  

Por Dirceu Alves Jr.

O diretor Sergio Módena permanece impregnado pelo dramaturgo americano Eugene O’Neill (1888-1953). No ano passado, ele comandou a montagem de Longa Jornada Noite Adentro, que estreou em junho em São Paulo, passou por Porto Alegre e, neste 2023, chegou ao Rio de Janeiro. Tamanho envolvimento com o texto, nitidamente inspirado na família do autor, não o engessa na hora de levar ao palco A Falecida, de Nelson Rodrigues (1912-1980). Pelo contrário, oferece ferramentas para estabelecer um contraponto entre O’Neill e o brasileiro. “Enquanto O’Neill levou a biografia de sua família para a cena, Nelson criou histórias ficcionais em cima do seu universo e são fascinantes as camadas desvendadas com estas comparações”, afirma.

Protagonizada por Camila Morgado, A Falecida, que chega ao Teatro do Sesc Santo Amaro, na capital paulista, a partir de 18 de agosto, é uma das oito tragédias cariocas de Nelson Rodrigues. Escrita em 1953 – há exatos 70 anos e uma década depois da revolução estética de Vestido de Noiva –, a peça deu início a um profícuo ciclo de observação do cotidiano e do falso moralismo perpetuado na sociedade. Também fazem parte das chamadas tragédias cariocas, nomenclatura dada pelo crítico Sábato Magaldi (1927-2016), Boca de Ouro, Os Sete Gatinhos, O Beijo no Asfalto e Toda Nudez Será Castigada, entre outras.  

Enterrada em caixão de luxo

Zulmira (interpretada por Camila) é uma mulher frustrada e sem perspectivas, que imagina sofrer de tuberculose e vive no subúrbio de Aldeia Campista com o marido desempregado, Tuninho (papel de Thelmo Fernandes). O sonho que lhe resta é ser enterrada em um caixão de luxo para que todos os familiares e vizinhos a invejem. Para isso, ela se envolve com o abonado Pimentel (representado por Alcemar Vieira), que lhe promete um enterro capaz de despertar ciúme até na alta sociedade. No elenco da versão de Módena, levantada em ensaios no Rio de Janeiro nos últimos dois meses, aparecem ainda a atriz Stella Freitas e os atores Gustavo Wabner, Thiago Marinho e Alan Ribeiro.  

Cena de A Falecida. Foto de Victor Hugo Cecatto

“O Brasil mudou tanto, mas, na verdade, não mudou tanto assim, não venho com ilusões de que vivemos em um outro país”, pensa Módena. Para ele, todos os temas levantados por Nelson em 1953, como o fanatismo religioso em busca da purificação, o conservadorismo como forma de eliminar o desejo e a visão machista da mulher, voltaram se me manifestar na última década. “Mas o que mais me chama atenção é a exclusão social, porque Zulmira e Tuninho não têm chance alguma de ascensão”, declara. “Por isso, ela trai o marido com o Pimental, pela oportunidade de algo novo, mas a culpa a leva de volta à repressão.”     

Módena acredita que o Brasil de 1953, mesmo que contasse com grandes contrastes sociais, deveria carregar mais esperança. O presidente Getúlio Vargas (1882-1954) tinha voltado ao poder de forma democrática, o desenvolvimentismo começava a ser traçado e o ufanismo prometia um futuro melhor. Quase na metade da década de 2020, o diretor repara que o brasileiro enxergou que o progresso não é tão bonito quanto se imaginava. “Hoje, não sei onde estamos porque o avanço tecnológico nos assusta mais que qualquer coisa e as pessoas, assim como os personagens de Nelson, parecem enredadas na hipocrisia.”

Vulcão reprimido

Na pele de Zulmira, Camila volta ao teatro depois de 11 anos dedicados à televisão e ao cinema. Ela, que participou de espetáculos de Gerald Thomas e contracenou com Reynaldo Gianecchini na comédia Doce Deleite, dirigida por Marília Pêra (1943-2015), pisou no palco pela última vez em Palácio do Fim, trilogia de monólogos comandada por José Wilker (1944-2014), que contava ainda com o ator Antonio Petrin e a atriz Vera Holtz. Módena se confessa encantado pela protagonista, a quem define como uma atriz essencialmente rodriguiana. “Para a Zulmira, precisava de uma intérprete que trouxesse uma imensa carga emocional porque ela é um vulcão reprimido, e Camila tem essa intensidade, um desassossego, uma loucura cênica típica das personagens do Nelson.

“A Falecida”, com Camila Morgado. Foto Victor Hugo Cecatto

Camila salienta que todas as criaturas do dramaturgo têm uma psicologia muito densa, e Zulmira é um ser trágico e riquíssimo que circula por uma infinidade de afetos. “Acho pertinente, por exemplo, que a personagem tente se purificar através da religião e, neste Brasil de 2023, estes são temas muito caros que precisamos discutir para nos resolver como sociedade”, afirma ela. O convite de Módena veio junto com a reflexão da importância de trazer à tona uma dramaturgia tão consistente – e Camila sempre quis fazer um texto de Nelson. “A gente apresenta com orgulho o autor que temos em mãos e mandamos uma mensagem para todas as mulheres que foram oprimidas, apagadas, desrespeitadas porque, em nome delas, a Zulmira, essa heroína trágica, se faz presente.”

O excesso de admiração levou Módena a atravessar 15 anos como encenador sem se entregar a uma peça rodriguiana. Agora, com a resistência vencida, o diretor cita O Beijo no Asfalto e Vestido de Noiva como duas possibilidades de mergulhos futuros. Camila, plenamente entregue e fiel a Zulmira, garante que sequer cogita almejar um projeto em que interprete outra das tantas mulheres criadas pelo autor. Provocada um pouco mais, porém, a atriz confessa a admiração pela peça Álbum de Família. “Acho Dona Senhorinha um papel fantástico, mas falando nisso agora me sinto até como se estivesse traindo Zulmira.”

Serviço

A Falecida

Teatro do Sesc Santo Amaro

Rua Amador Bueno, 505, Santo Amaro.

Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 18h. R$ 40.

Até 1º de outubro. A partir de 18 de agosto

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Ficha Técnica

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Serviço

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