O melhor do teatro está aqui

A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

Grupo Tapa festeja 45 anos com vigorosa montagem de “Tio Vânia”

Sinopse

Clássico escrito pelo russo Anton Tchekhov no final do século 19 continua atual por tocar em assuntos relacionados à ecologia, feminismo, disputa de terras e relações amorosas

Por Ubiratan Brasil

Foi uma feliz coincidência. Prestes a completar em junho 45 anos de atividade, o Grupo Tapa, um dos mais importantes coletivos teatrais do Brasil, estreou no Sesc Santana a montagem de Tio Vânia, texto clássico do dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904).

“Na verdade, não foi algo planejado, pois estamos para montar essa peça desde 2019 e só agora foi possível”, ressalta o diretor e um dos fundadores do grupo Eduardo Tolentino de Araújo. “Resistimos ao tempo e às pressões econômicas porque, quando acreditávamos que o conjunto seria dissolvido por falta de verbas, escolhíamos um texto para a despedida, que se transformava em um grande sucesso e permitia que prosseguíssemos mais um pouco.”

Fruto da persistência de artistas cientes de seu compromisso com a cultura da sociedade e também da resistência ao descaso inconcebível das políticas governamentais em todas as esferas, o Tapa surgiu no Rio de Janeiro em 1979, mas foi a partir de sua transferência para São Paulo, em 1986, que o grupo passou a realizar “um trabalho rigoroso, essencialmente voltado para um ‘teatro de dramaturgia’ e um indiscutível empenho em investigar os processos de criação por meio de pesquisa e análise”, como consta na Enciclopédia Itaú Cultural.

Walderez de Barros, Zécarlos Machado e Brian Penido Ross na peça Tio Vânia. Foto Ronaldo Gutierrez

E a dramaturgia de Tchekhov esteve presente em momentos marcantes. O Tapa completava 20 anos de estrada quando estreou Ivanov. Nas comemorações de 40 anos, foi a vez de montar O Jardim das Cerejeiras. Agora, com Tio Vânia, o coletivo chega com uma obra que transcende tempo e espaço.

Escrita em 1896, a trama mostra o proprietário de terra Ivan (Vânia, em russo, interpretado por Brian Penido Ross); sua sobrinha Sônia (Anna Cecília Junqueira) e Astróv (Bruno Barchesi), o médico da família, e suas vidas desestabilizadas após chegada do célebre professor Serebriakóv (Zécarlos Machado), agora aposentado, e de sua jovem e bela esposa Helena (Camila Czerkes). Todos passam a viver em função do professor, comprometendo a rotina dos habitantes da casa, incluindo ainda a matriarca Maria (Lilian Blanc), o agregado Bexiga (Tato Fischer) e a empregada Babá (Walderez de Barros).

“Tchekhov foi, sobretudo, um investigador dos mistérios da natureza humana“, observa Tolentino, também responsável pela tradução direto do russo e que vai ser editada pela Edusp para sua coleção Em Cena. “E o fato de ele ter sido médico foi capaz de lhe conferir um olhar especial para o homem, visto por ele trás das aparências.”

Walderez de Barros e Bruno Barchesi na peça Tio Vânia. Foto Ronaldo Gutierrez

“Apesar de ter sido escrita há mais de 100 anos, a peça traz mensagens atualíssimas, especialmente sobre os danos provocados pela destruição da natureza. Falar sobre o perigo do corte indiscriminado de árvores, como demonstra o médico Astróv, ganha mais importância diante da tragédia que sofre o Rio Grande do Sul nesses dias”, observa Zécarlos Machado.

A presença dele, assim como de Walderez de Barros e Lilian Blanc, todos artistas experientes e com grande bagagem na carreira, é um ponto alto da montagem de Tio Vânia. “Eles conferem mais profundidade e importância para papeis aparentemente menores, fazendo o público notar com mais interesse àqueles personagens”, diz Tolentino.

Tio Vânia marca um reencontro presencial importante do grupo com Walderez após 30 anos. A última colaboração presencial com a atriz foi em Querô, Uma Reportagem Maldita, de Plínio Marcos, em 1993. Ambos estiveram juntos em As Portas da Noite, de Jacques Prévert, em uma versão digital durante a pandemia. “Estou com 83 anos e não tenho mais disposição física para determinados papeis protagonistas”, comenta. “Como amo estar no palco e não quero ficar em casa chorando, diante da televisão, personagens como a Babá são um grande presente.”

Brian Penido Ross é o protagonista da peça Tio Vânia. Foto Ronaldo Gutierrez

O espetáculo também marca a volta de Lilian Blanc ao Grupo Tapa, local de sua estreia profissional nos anos 1990. Uma das marcas do dramaturgo é o equilíbrio entre os personagens, nenhum se sobrepõe ao outro, todos têm a mesma importância para atingir o resultado final da obra.

“Todo mundo tem um Tio Vânia que, nas festas familiares, diverte as crianças com truques e comentários escatológicos e aos adultos com piadas picantes que, ao subir do teor etílico, vão se tornando ácidas, até ficarem desagradáveis por colocar o dedo em feridas ocultas da família. Ser parente não é prerrogativa, ele é chamado de tio pelos amigos do sobrinho. Sua condição inerente é ser tio. Ele é o homem comum, atolado em dívidas, exaurido pela mediocridade à sua volta, descrente da política e cansado dos discursos e teorias inexequíveis. Tio Vânia são os nossos vizinhos, ou melhor, nós mesmos, com nossas frustrações. Todo Tio Vânia tem um amigo para discutir, polemizar, divergir e com isso se manter vivo e cativar a atenção da plateia familiar”, salienta Tolentino.

Polarizações ideológicas, contendas familiares, emancipação feminina, a hipocrisia da fidelidade conjugal se cruzam por fios invisíveis do texto que transcende seu tempo, espaço, além de uma reflexão sobre o meio ambiente, que situa a obra de Tchekhov no aqui e agora.

O dramaturgo encerra a época de ouro da literatura russa, o período de Tolstoi e Dostoievski, e abre os caminhos para algo novo. E Tchekhov é a quintessência do realismo: o mais expressivo autor dramático dessa plêiade de russos. Estudioso da história do teatro mundial e suas constantes evoluções, Tolentino classifica a importância da dramaturgia russa.

“Existem três grandes movimentos do teatro: os gregos, os elisabetanos (Shakespeare) e os russos dos quais Tchekhov é a sua mais completa tradução. Ele retratou o realismo burguês, inseriu elementos na dramaturgia, os textos são sonatas em quatro atos e os temas se cruzam como em um concerto e se estruturam praticamente em um romance, onde o que importa é o que está por trás do que é dito”, argumenta.

Tchekhov é a quintessência do que existia de literatura, artes plásticas, teatro, música na Rússia durante o século 19. Ele escreveu teatro como ninguém tinha feito até então”, continua Tolentino.

Camila Czerkes e Bruno Barchesi em cena da peça Tio Vânia. Foto Ronaldo Gutierrez

O escritor e dramaturgo brasileiro Antonio Callado dizia que poucos escritores estrangeiros são mais intrinsecamente “brasileiros” que Tchekhov: as elites russas não eram elites, fazendeiros e senhores de engenho não era bons nem maus, mas estúpidos e imprevidentes.

“Entre as várias camadas, duas questões acabam girando entre os personagens: a terra como propriedade privada e a terra como propriedade da humanidade“, diz Tolentino. “A história gira em torno de uma família que briga pela posse da terra e um personagem que reforça a questão do reflorestamento e esgotamentos dos rios. Em meio a isso, existem as relações amorosas que vão se misturando. São reflexões que dialogam em cheio com a atualidade que vivemos.”

Serviço

Tio Vânia

Sesc Santana. Av. Luiz Dumont Villares, 579.

Quinta a sábado, 20h. Domingo, 18h. Sessão extra, sexta-feira, 31 de maio, 15h. R$ 50.

Até 16 de junho

[acf_release]
[acf_link_para_comprar]

Ficha Técnica

[acf_ficha_tecnica]

Serviço

[acf_servico]