Escrita em 1949, “Dorotéia” fecha o ciclo das obras do Teatro Desagradável, assim intitulado por Nelson, e sucede “Álbum de Família” (1945), “Anjo Negro” (1946) e “Senhora dos Afogados” (1947). As Obras Míticas, chamadas assim pelo crítico Sábato Magaldi, foram efetivamente o momento de reflexão do autor e trouxeram outro universo para atores, diretores e críticos em geral. São obras poéticas, viscerais, sobretudo simbólicas e repletas de signos. A peça “Dorotéia” talvez seja a que menos agrida socialmente por se tratar do culto à beleza e do que ele representa.
Mas há nas entrelinhas um objeto maior do que o da destruição dessa beleza (tema central da obra), que é o amor.
O Amor em “Dorotéia”
Comecei a olhar a obra pelo universo do amor improvável, pelo abandono e ausência desse amor – “… eu sei o que aconteceu com a nossa bisavó, sei que ela amou um homem e se casou com outro…”.
Decidi então ‘abandonar’ as indicações do Nelson sobre os personagens, assim como padrões de cores – “… três viúvas em luto fechado…”, os leques, as máscaras. Resolvi escancarar o amor para as primas D. Flávia, Maura e Carmelita, e para a própria Dorotéia.
Lembrava-me da histeria do início do século XIX, em que as mulheres encontravam na masturbação a ‘redenção’
para suas vidas. Todo esse universo me aproximava de Lorca e a sua “A Casa de Bernarda Alba”, por refletir sobre o amor enclausurado, escondido, desmedido e capaz de mudar àqueles que cercam a pessoa tomada por ele. As vontades e desejos em “Dorotéia” passaram a refletir no texto de Lorca e ficaram cada vez mais reprimidas na farsa
de Nelson: era como um espelho!
Senti a necessidade de trazer, não só simbolicamente, mas fisicamente, a presença do ’falo’, do masculino ao ‘jogo’, e estão aqui para reforçar que a vontade de amar e o desejo são iminentes.
O mito das três Bruxas, das Moiras, das Eríneas Ferozes trouxe à mítica de “Dorotéia” um ‘tempero’ às três primas do texto. “A Primavera” de Botticelli foi outro ponto de pesquisa para a encenação. A atmosfera de sonho, de rito, de fantasia, de improvável do quadro, me provocava e estimulava o pensamento sobre o irreal na obra de Nelson Rodrigues.
O quadro explicitava todos os personagens, a textura, o movimento,
a paleta de cores, a luz e o lirismo.
Em um momento em que o amor virtual impera e o culto ao corpo sobrevive, “Dorotéia” bate à sua porta para te colocar frente a frente com seu espelho.
Você vai se olhar?
Jorge Farjalla
***foto de Carol Beiriz