A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

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A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

Ruy Cortez e a Companhia da Memória investem em versão polifônica de “O Jardim das Cerejeiras”

Sinopse

Clássico de Tchekhov ganha o palco do Teatro Anchieta com elenco diverso e cena inédita que foi cortada da primeira montagem do texto, em 1904

Por Dirceu Alves Jr.

Aos 15 anos, Ruy Cortez começou a estudar artes cênicas na Escola de Teatro Célia Helena e, vasculhando a biblioteca da instituição, encontrou um exemplar de O Jardim das Cerejeiras, peça do russo Anton Tchekhov (1860-1904), na tradução do brasileiro Millôr Fernandes (1923-2012).

O belo título chamou de imediato a atenção do adolescente, que leu o conteúdo e, encantado, traçou um plano a longuíssimo prazo, para um futuro que imaginava muito distante. “Quando eu for bem velhinho, quero dirigir essa peça porque, devido a sua complexidade, certamente não é uma empreitada para os jovens”, pensou.

O tempo passou, e Cortez se consolidou como um dos mais profícuos encenadores dos palcos paulistanos entre as décadas de 2000 e 2010, exigente às suas escolhas e disposto a reunir um repertório de apurado senso estético.

Cena de O Jardim das Cerejeiras, com direção de Ruy Cortez. Foto Ale Catan

Em 2022, ele apresentou ao público o seu primeiro Tchekhov, uma ousada encenação simultânea de As Três Irmãs com um texto inédito do dramaturgo Luís Alberto de Abreu, A Semente da Romã, que enfoca os bastidores de uma montagem do clássico russo por artistas brasileiros e os conflitos deles nos bastidores. O resultado, sublime, visto no Teatro do Sesc Pompeia rendeu a Cortez e à codiretora Marina Nogaeva Tenório o reconhecimento dos prêmios Shell e da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).  

A experiência de As Três Irmãs e a bagagem de mais de três décadas dedicadas ao teatro levou Cortez a entender que não precisava ficar “bem velhinho” para se debruçar sobre O Jardim das Cerejeiras. “Este pensamento de que somos eternamente jovens é culpa do Antunes Filho e do Zé Celso Martinez Corrêa que sempre nos trataram como garotos”, brinca o artista, que chega aos 50 anos em março.

Junto da Companhia da Memória, coletivo mantido por ele desde 2007, Cortez enxergou Tchekhov como um profeta da pós-modernidade que, há mais de um século, demonstrava preocupações com a cosmopolítica, a destruição da natureza e a vida no planeta. “Existe uma ressonância com o que nos ronda, principalmente com a crise climática, e tudo nos fez crer que a hora de fazer essa peça era agora”, justifica. 

Outra cena de O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov, com direção de Ruy Cortez. Foto Ale Catan

A visão de Cortez e da Companhia da Memória ganha os tablados do Teatro Anchieta do Sesc Consolação neste sábado, dia 18, e a encenação se espalha pela plateia, através de uma passarela sobre o primeiro nível das poltronas em uma cenografia criada por André Cortez que ultrapassa os limites do palco italiano. À frente de um elenco de catorze atores e atrizes, Sandra Corveloni interpreta Liuba, a líder de uma família de aristocratas decadentes, que volta a propriedade rural prestes a ser leiloada junto do irmão, Gaiév (papel de Mario Borges), entre a nostalgia do glamour e a necessidade de sobrevivência.

O cerejal, glorioso no passado, virou prejuízo, deve ser derrubado e pode dar espaço a casas de veraneio, salvando todos da penúria. O possível comprador é Lopakhine (vivido por Caio Juliano), filho e neto de camponeses, que enriqueceu e trata a compra como uma espécie de revanche aos antigos patrões que oprimiram seus antepassados. “A peça fala de radicalizações, de mudanças de paradigmas, da ideia de degeneração e regeneração”, comenta o diretor. “É sobre como curar as feridas, em que ponto precisamos melhor e essa melhora só se dá pelo afeto, o mesmo afeto que faz falta na nossa sociedade atual.”

Um dos grandes diferenciais desta montagem é apostar na versão integral do texto, tal como foi concebido por Tchekhov em 1903 e entregue ao diretor Constantin Stanislavski (1863-1938), responsável pela primeira encenação, no Teatro de Arte de Moscou, um ano depois. Stanislavski não gostou da última cena do segundo ato e pediu para cortá-la. Com o sucesso da estreia, a peça foi publicada sem esta passagem, e O Jardim das Cerejeiras passou a ser visto pelo mundo afora de acordo com a segunda versão. 

Cena de O Jardim das Cerejeiras, com direção de Ruy Cortez. Foto Ale Catan

Na cena, a personagem Charlotta (interpretada por Ondina Clais) trava um significativo diálogo com o conservador Firs (papel de José Rubens Siqueira). “A gente leu a cena e caiu duro, ali estão todas as mazelas de Tchekhov, o sofrimento de uma artista que não tem para onde ir diante de um velho reacionário, dúbio, mas que não deixa de ser carinhoso”, explica Cortez. “O que o autor cria ali é uma subjetividade que nos permite conhecer os personagens e talvez a nossa seja a primeira montagem mundial a incluir essa cena.”   

O numeroso elenco traz atores e atrizes de cinco gerações e diferentes correntes dramáticas – o que fortalece a polifonia do espetáculo. Sandra Corveloni é uma atriz lapidada no Grupo Tapa, Ondina Clais tem sua base formada pelo CPT de Antunes Filho e Beatriz Napoleão, que interpreta Ánia, a filha de Liuba, é uma atriz no frescor dos seus 20 anos. Mario Borges e Walter Breda, que despontaram na década de 1970, passaram por diferentes segmentos nos palcos e nas telas, assim como José Rubens Siqueira, de 79 anos, que tem destacada trajetória como dramaturgo

Caio Juliano, de 43 anos, ganhou estrada nas improvisações do espetáculo Jogando no Quintal, com a Cia. do Quintal, e participou de séries de televisão. Sandra Corveloni ressalta a relevância da escalação de Juliano, um ator preto, para viver Lopakhine como uma grande visão de Cortez. “O Caio já traz na pele uma leitura para o personagem que o joga em outro contexto, uma leitura sobre a escravidão no Brasil e, como Lopakhine, hoje rico, enxerga o jardim como a representação do sofrimento dos seus antepassados”, observa a atriz. “Com esse coletivo tão diverso, a gente conta a história de Tchekhov e a história do Brasil.”

O Jardim das Cerejeiras, peça com Sandra Corveloni e direção de Ruy Cortez. Foto Ale Catan

Em seu vasto currículo, Sandra interpreta pela primeira vez uma protagonista de Tchekhov. Em 1998, ela esteve no elenco de Ivanov, sob a direção de Eduardo Tolentino de Araújo, e participou de outras leituras e experimentos dramáticos com seus alunos sobre a obra do russo. Liuba é uma grande personagem feminina, que, no Brasil, já foi interpretada por Cleyde Yáconis (1923-2013), Nathalia Timberg, Tônia Carrero (1922-2018) e Clara Carvalho, entre outras. “É mais uma dessas criaturas de Tchekhov em que a gente fica impressionada”, diz. “É como se ele pegasse todas as questões do mundo, dividisse e jogasse nas personagens.”

Desta vez, segundo a intérprete, Cortez investiu em uma abordagem de Liuba como uma mulher à frente de seu tempo e, por isso, tão perdida. “Ela está colocada neste lugar como se fosse uma fotografia, uma memória, como se habitasse um mundo de fantasmas”, antecipa Sandra. “Ela se casa, perde um filho, gasta o que tem e o que não tem, mas não passa de uma mulher frágil, que não foi educada para enfrentar as adversidades, só que os tempos mudaram e ela ficou perdida”, completa.

Ruy Cortez, por seu turno, arremata o seu entendimento sobre a emblemática protagonista. “Liuba é puro amor, pura compaixão, não sabe dizer não a quem precisa e deve aprender a amar a si mesma, deixar de se culpar por questões da sua vida para, assim, poder compartilhar o afeto.” 

Serviço

O Jardim das Cerejeiras

Teatro Anchieta – Sesc Consolação. Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque

Sextas e sábados, 20h; domingos e feriado, 18h. R$ 70. Haverá sessões extras nos dias 6 e 13 de fevereiro, às 15h, e no dia 27 de fevereiro, às 20h. 

Até 2 de março (estreia 18 de janeiro)

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Ficha Técnica

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Serviço

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