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O amor de um cachorro pela escritora que o criou

Sinopse

‘Quase de Verdade’, da Cia. Los Lobos Bobos, nasceu como vídeo na pandemia e agora chega ao teatro, mostrando o quanto a obra de Clarice Lispector sempre vai bem nos palcos

Por Dib Carneiro Neto

Um cachorro de nome Ulisses conversa com sua dona, Clarice, e, além de declarar seu amor por ela, conta à dona uma aventura que viveu no quintal vizinho, onde havia um galinheiro superpovoado e uma figueira maldosa e invejosa. Assim é o livro de Clarice Lispector, Quase de Verdade, que a Cia. Los Lobos Bobos transformou em teatro, agora em cartaz no Sesc Pinheiros, em temporada até o fim de novembro, sempre aos domingos, em dois horários.

Cena de Quase de Verdade. Foto Ale Catan

A trajetória do espetáculo é movimentada. Teve de nascer no formato online, como peça-filme, por conta do período de isolamento rigoroso da pandemia – e ficou tão bom, mas tão bom, que o vídeo ganhou um prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, a APCA. Agora, presencialmente, nasceu um novo processo, uma nova aventura, que o diretor GpeteanH vai nos detalhar na entrevista que se segue: 

Canal MF – O espetáculo nasceu no formato online, não? Conte como tudo aconteceu.
GpeteanH –
A idealização do projeto é minha e do meu sócio na Los Lobos Bobos, o Marcelo Raffa’s. Em 2001, criamos a companhia e desde então mantemos artistas fiéis ao nosso lado. Foram esses parceiros incríveis que construíram essa nossa trajetória no teatro para a infância e juventude. Nossa equipe artística e técnica é toda de excelência e comprometida com um fazer teatral de extrema qualidade e graças a eles temos esse espetáculo em nosso currículo. Voltando a falar no Quase de Verdade. Estávamos no meio da pandemia e havíamos ganhado o Prêmio Zé Renato para fazer a peça. Começamos a nos reunir buscando um jeito de viabilizar o projeto. A primeira coisa que decidimos foi a de não fazer no formato presencial e sim online. Marco Lima é demais e contribuiu com todos os seus saberes. Nesse projeto ele costurou a dramaturgia, arquitetou a encenação, construiu os bonecos utilizados em cena, e arrematou tudo fazendo a direção de arte. Marcelo Pellegrini compôs as músicas, fez os arranjos, acompanhou os ensaios o tempo todo e fez a direção musical. As atrizes Carol Badra e Débora Duboc se debruçaram no livro e foram recriando no palco as sensações que as palavras de Clarice lhes transmitiam. Nessa fase as duas tiveram a ajuda incessante do Petrônio Gontijo. Ele ajudou demais as duas atrizes com a palavra. Muitos exercícios e brincadeiras foram realizadas sempre com o objetivo de chegar à essência do livro. Tudo isso ia acontecendo e parando de acontecer, pois no meio da nossa criação, pessoas que estavam ao nosso redor apareciam com covid e a gente esperava de dez a quinze dias para voltar a se encontrar presencialmente e retomar os ensaios. Tudo para não contaminarmos uns aos outros. No fim, decidimos que a direção artística seria assinada por todos nós. Todo mundo deu muito palpite no espetáculo, às vezes era o Petrônio, outras vezes era eu e outras o Marco. E as atrizes criando sem parar. Fazendo e refazendo. Foi um processo lindo e ao mesmo tempo tenso. Muitas e muitas vezes as duas atrizes trabalhavam solitárias, pois era um risco aglomerar mais gente. A Débora Duboc nos ofertou o quintal de sua casa para construirmos o nosso espetáculo. Como a estória do Quase de Verdade se passa no quintal da casa do vizinho, aceitamos na hora. O legal é que estaríamos em espaço aberto, com menos risco de contaminação. E assim seguimos com medo e sem medo. Quando sentimos que tínhamos a peça pronta, chamamos Aline Santine para criar a luz e marcamos o dia da gravação. Não posso deixar de citar a dedicação de Franz Granja, nosso produtor executivo e Arnaldo D`ávilla nosso diretor técnico. Esse processo levou quase um ano. Gravamos no Teatro Faap. A peça foi construída com muito amor, dedicação, alegria e CORAGEM, em meio ao caos da pandemia. Foi inesquecível o que vivemos. 

Canal MF – Como foi o processo de passar do online para o presencial? Conte o que mudou: cenas que saíram, cenas que entraram…
GpeteanH –
 O espírito foi o mesmo. Amor, dedicação, alegria e coragem. Kátia Daher e Badú Moraes já haviam passado pela companhia, depois que Mel Lisboa, devido à agenda atribulada, não pôde mais estar com a gente em Pescadora de Ilusão, nossa peça inspirada no livro A Mulher que Matou os Peixes, também de autoria da Clarice. Depois que definimos a nova equipe, fizemos uma longa reunião e, objetivados novamente, deixamos os mistérios de Clarice nos guiar. O trabalho de passar do online para o presencial foi tão cansativo quanto o da primeira conquista. Eu diria exaustivo, mas hoje todos da equipe desfrutamos do sabor da missão cumprida, compartilhamos uma “Felicidade Clandestina”.  A gente manteve tudo que criamos para o online e fizemos algumas pequenas modificações nas transições de cena. No online tivemos o privilégio de trabalhar com o genial e generoso diretor de audiovisual Toni Venturi. Utilizamos a linguagem do cinema para solucionar as passagens de cena. Agora tivemos que utilizar a força do teatro para fazer tudo aos olhos dos espectadores atentos ao menor movimento. Enfim, tudo foi de parar o coração.

Cena de Quase de Verdade. Foto Ale Catan

Canal MF – Para você, essa peça é sobre o quê?
GpeteanH –
Em um primeiro olhar, eu poderia dizer que essa peça fala sobre a força da união, sobre a luta de classes, sobre a inveja, mas no mais profundo do meu eu sinto que esse texto da Clarice fala da relação de amor entre ela e seu cachorro Ulisses. O que me toca nas palavras ali escritas por Clarice é esse imenso amor. Em uma música do espetáculo Ulisses canta “Estar com Clarice é estar com Deus”. Só quem ama um cachorro da forma como Clarice amou Ulisses pode compreender o que é essa declaração do Ulisses para sua dona. Convivi por dezesseis anos como uma vira-lata chamada Maria do Céu, e todas as vezes que vejo o espetáculo reconheço e revivo minha relação com ela. Ouvir Ulisses falar de Clarice e vice-versa é um aconchego para o meu coração. 

Canal MF – Fale um pouco dessa sua preferência por Clarice.
GpeteanH –
Conheci Clarice aos 17 anos, quando comprei um disco da Bethânia, chamado Pássaro da Manhã. Bethânia dizia no disco a seguinte frase de Clarice: “Eu quero me apossar do é da coisa”. “O é da coisa” mexeu com minhas profundezas. Enlouqueci e saí atrás dos livros da autora. Desde então fui me entregando para seus mistérios. Li e reli Clarice, a vida toda. Não acho que seja uma questão de preferência e sim de identificação. Tudo o que ela escreve me deixa marca, sou todinho tatuado por suas palavras. Muitas vezes racionalmente não compreendo o que Clarice está querendo dizer com uma frase, mas sensorialmente fico paralisado com o que ela ali escreveu. 

Canal MF – Qual foi o livro de Clarice mais difícil até agora nessa sua missão de transformá-los em peça e por quê?
GpeteanH –
Tenho eu a ousadia de dizer que Clarice gosta da minha pessoa e misteriosamente me manda recadinhos de como devo conduzir uma adaptação de seus livros para o palco. Quando fiz a recriação de A Vida Íntima de Laura, foi muito orgânico, sereno e tive o complemento da dramaturgia quando as músicas do Pedro Paulo Bogossian chegaram. Quando fiz Pescadora de Ilusão, que é baseado em sua obra A mulher que Matou os Peixes, foi um pouco mais difícil. Só consegui finalizar o trabalho de dramaturgia quando misturei histórias minhas com as histórias dela. Fiz isso obedecendo um ensinamento de Clarice que diz que quando a gente conta uma estória a gente também tem que se contar dentro dela. No Mistério do Coelho Pensante, tive como companheiro de trabalho o Marco Lima. Fazer a quatro mãos foi reconfortante. No Quase de Verdade, o Marco Lima chegou com a proposta dramatúrgica pronta e gostamos do que ele tinha feito e a seguimos como cartilha para realizar a montagem. Na verdade: se entregar para a tarefa de recriar Clarice nos palcos é mais do que difícil. É tarefa árdua. Para mim, o jeito é enfrentar os osbstáculos, rir e ir em frente. Fazer com alegria, com coragem. 

Canal MF – Por que você acha que a obra de Clarice vai parar com frequência no teatro infantojuvenil?
GpeteanH –  Pela qualidade dos seus escritos. Boa literatura pode sim virar ótimo teatro. Para nós que fazemos teatro infantojuvenil, fazer Clarice no palco é saber que estamos partindo de uma matéria-prima inquestionável. Tenho eu a impressão de que, por pior que fique o espetáculo, ainda vale a pena ver. Tenho o maior orgulho em dizer que muitas crianças conheceram Clarice por meio dos espetáculos da Los Lobos Bobos.

Canal MF – Fale sobre as duas atrizes escolhidas para esta versão presencial. O que elas têm que serviu para se encaixarem nos papeis?
GpeteanH –
Antes de optarmos por substituir Débora Duboc e Carol Badra, que fizeram o Quase de Verdade no nosso audiovisual, ficamos tentando alinhar as agendas de ambas. Débora e Carol foram as almas iluminadas na criação desse espetáculo. Além de serem duas das melhores atrizes que temos, são duas pessoas incríveis e são profissionais comprometidas e entregues ao projeto que aceitaram fazer. Vale a pena dizer que Carol Badra fez todos os nossos espetáculos inspirados em Clarice. Débora chegou até a Los Lobos Bobos através de Carol. É muito amor envolvido, muita alegria, muito prazer, muito sonho de futuro, mas as agendas ficaram impossíveis e juntamente com elas decidimos deixar o espetáculo seguir seu caminho sem a presença delas. Imediatamente trouxemos para a roda Kátia Daher e Badu Morais. Amigas queridas, artistas inquestionáveis. Elas cantam lindamente! São atrizes experientes, com trajetórias ímpares no teatro. Para nossa alegria, a agenda das duas permitia essa imersão no universo de Clarice. Desde o início o nosso diálogo sempre foi muito produtivo. Existe escuta. Existe o mistério! Desde o início mergulhamos com muita coragem no material já construído para o online para tirarmos dali a versão para o palco. Kátia e Badu têm nos nossos corações lugares privilegiados. Depois da estreia, estávamos todos felizes! Saímos vencedores dessa nossa jornada. 

Canal MF – Que outras obras de Clarice Lispector você quer adaptar?
GpeteanH –
Tenho de ouvir o chamado. Fizemos Laura em 2005, e somente em 2017 fizemos A Mulher que Matou os Peixes. Carol Badra que já havia feito esses dois espetáculos veio com a ideia de fazermos os outros livros infantojuvenis da Clarice. Não foi uma ideia minha, mas escutei o recado de Clarice vindo através de Carol. Começamos a batalhar formas de viabilizar os novos projetos. Quando íamos estrear O Mistério do Coelho Pensante, a pandemia chegou e nos deixou na lona, com dívidas. Isso aconteceu e nos deixou sem chão, mas logo depois ganhamos o Prêmio José Renato para fazermos o Quase de Verdade, que em princípio era para ser presencial, mas mudamos tudo e tivemos de fazer online. Ficou lindo, ganhamos o APCA. Quando os presenciais voltaram finalmente, estreamos o Coelho Pensante e só agora estamos podendo mostrar Quase de Verdade presencialmente. Eu digo para todo mundo “que não faço teatro, é o teatro que me faz”, eu me entrego ao mistério de estar nesse universo sempre indo em frente. Quando terminamos de fazer uma peça, ou mesmo uma temporada, quase nunca temos uma nova proposta pela frente. Temos de ficar buscando meios de novamente estar no palco. Nunca sabemos se vamos conseguir montar uma nova peça. Nesse momento te digo que alimento o desejo de fazer novos espetáculos inspirados em obras de Clarice, mas se esses desejos vão se concretizar, não sei. Como disse Clarice “viver é uma missão secreta”.

Serviço

Quase de Verdade.

Sesc Pinheiros. Auditório. Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo. Tel. 11 3095-9400.

Domingos, 15h e 17h. R$ 30. Grátis para crianças até 12 anos.

Até 26 de novembro

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Ficha Técnica

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Serviço

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