Espetáculo “Eu Sou Thelma e Ela é Minha Louise” enfoca personagens de diferentes gerações ao retratar companheirismo, assédio e violência sexual
Por Dirceu Alves Jr.
Na cena final de Thelma e Louise, filme realizado pelo cineasta Ridley Scott em 1991, as personagens do título ocupam um carro conversível. Elas estão à beira de um penhasco, cercadas de viaturas com sirenes vermelhas e policiais em prontidão para algemá-las. Louise (interpretada por Susan Sarandon) dá um carinhoso beijo em Thelma (vivida por Geena Davis), aperta a mão da amiga e pisa firme no acelerador rumo ao infinito. Depois de tudo o que elas passaram juntas – caso não tenha visto o filme, procure saber –, seria impossível engatar a ré e entregar a liberdade para aqueles homens.
A atriz e dramaturga Rita Batata, de 38 anos, alugou a fita em uma videolocadora e assistiu ao lado da mãe lá no começo dos anos 2000. Devia ter 13, 14 anos, no máximo. Foi ela quem apresentou o filme na reta final da pandemia, em 2021, para a amiga Mariana Leme, atriz e diretora, de 39 anos, que não conhecia a história. “O pacto de amizade firmado pelas personagens é algo que diz respeito a nós, mulheres, e tudo o que é tratado ali continua muito atual”, afirma Rita.
Para Mariana, o longa é bem mais profundo e denso que aparenta à primeira vista e revela inúmeras situações bastante comuns ao universo feminino. “São duas amigas e é essa parceria que sustenta a busca delas, e a gente queria montar uma peça que fosse um dueto nosso até para que o projeto tivesse longevidade, conseguisse viajar e por que não falar da nossa própria relação?”, indaga.
O espetáculo Eu Sou Thelma e Ela é Minha Louise estreia nesta sexta, 13, no Espaço das Artes do Sesc Santo Amaro. Rita escreveu, Mariana dirige e as duas atuam em uma contracena que fala delas e de várias outras mulheres em um permanente diálogo com o filme Thelma e Louise. A montagem começa no início da década de 1990 com Vera (papel de Rita), mãe de uma garota de 3 anos, e Madu (representada por Mariana), que acaba de descobrir uma gravidez. “Trata-se de uma jornada de emancipação e vamos avançando até os dias atuais”, explica Rita.
Em um salto de 10 anos, a trama mostra quatro personagens. Vera convive com Teresa, a filha adolescente, e Madu ainda lida com Luiza no final da infância. Neste momento é estabelecida a primeira conexão direta entre a peça e o longa de Ridley Scott. “O filme não faz referências à maternidade, mas queríamos falar de ancestralidade e, na peça, aparece a questão de uma violência sexual que transforma o destino de Vera e Madu”, explica Rita.
Uma nova passagem de tempo e lá se vai mais uma década, com Teresa e Luiza, em seus 20 e poucos anos, frequentando a faculdade, e as duas são obrigadas a enfrentar mais uma situação de risco. “Se a gente não trouxer à tona os perigos que rondam a rotina de uma mulher, talvez a situação demore muito mais para mudar”, aponta Mariana. “A gente tem que ter o direito de andar na rua sem medo, de vestir o que desejar, e falar sobre o assunto no teatro é nossa maneira de fazer um levante.”
Rita e Mariana são amigas desde 2007. Elas se conheceram no curso de interpretação do Núcleo Experimental do Sesi, em São Paulo, e, de imediato, participaram das peças Desatino, dirigida por Inês Aranha e Guilherme Sant’Anna, e O Sacrifício, comandada por Cibele Forjaz.
Há sete anos, a dupla fundou o Coletivo Rima, uma companhia para investir em produções próprias, e colocou em cena Pequenas Certezas (2017), texto da mexicana Bárbara Colio encenado por Fernanda D’Umbra, e Tubarão Banguela (2019), investida autoral de Rita, que também assinou a direção. “Eu sempre escrevi, mas me colocava naquele lugar de que estava fazendo algo que não era capaz”, conta Rita. “Depois de ter aulas com a Marici Salomão na SP Escola de Teatro, acho que fortaleci a minha musculatura e me encorajei a botar meus textos no mundo.”
Mesmo que oficialmente, Rita seja a dramaturga e Mariana a diretora, o processo em Eu Sou Thelma e Ela é Minha Louise foi fluído e sem limitações estabelecidas. “O trabalho de uma permeou a outra, e a gente construiu o espetáculo que queria, com a autonomia total para tudo”, declara Mariana. A montagem passeia por diferentes linguagens, vai do dramático ao épico, do trágico ao físico, passando pelo lírico e o contemporâneo. Em meio às referências de Thelma e Louise, cabem citações à tragédia grega Medeia, de Eurípides, e às obras do artista plástico italiano Caravaggio (1571-1610). “Nós saímos do lugar hollywoodiano de ação e aventura e entramos em temas próximos da nossa realidade, como o abuso, a pedofilia e a violência sexual”, diz Rita.
Mariana, entretanto, alerta que, apesar das questões tão sensíveis, Eu Sou Thelma e Ela é Minha Louise enfoca a amizade e pretende jogar o espectador para cima, jamais afundá-lo em seus problemas. “O que mais desejo agora é que as pessoas saiam do teatro com uma boa energia, pensando que é hora de ligar para aquela amiga e marcar um encontro há tanto tempo adiado”, avisa a diretora. “Eu acredito mesmo que a amizade é a salvação para todos os problemas e sempre nos indica novos caminhos.”
Em um companheirismo tão duradouro, uma pergunta para a dupla se faz inevitável: Afinal, entre vocês, quem seria a Thelma e quem seria a Louise? Rita afirma que existe um revezamento de personalidades. “Mas talvez eu seja mais a Louise porque tenho uma praticidade, aquela ideia de fazer a coisa acontecer naquela hora, entende?”, reflete a dramaturga. Mariana endossa a alternância, mas também se considera mais próxima à personagem de Susan Sarandon. “Eu já fui muito Thelma, mas acho que, em geral, tendo a ser mais Louise, porque já conduzi bastante a Rita em nossa relação, só que adoro quando sou conduzida por ela.”
Serviço
Eu Sou Thelma e Ela é Minha Louise.
Sesc Santo Amaro. Espaço das Artes. Rua Amador Bueno, 505, Santo Amaro.
Sexta, 20h. Sábado e domingo, 18h30. R$ 50.
Até 29 de setembro. A partir de sexta (13).