O fenômeno Gregorio Duvivier, releituras de clássicos antigos e recentes, a estrela Andrea Beltrão e a maioridade do Coletivo Negro estão entre os destaques da temporada
Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 17 de dezembro de 2025)
O Céu da Língua
Fenômeno do ano, o solo criado e protagonizado por Gregorio Duvivier foi visto por 170 mil pessoas e chega a fazer três sessões diárias por onde passa. O artista fala da presença quase invisível da poesia no cotidiano e, com citações ao poeta Luís de Camões (1524-1580), ao dramaturgo William Shakespeare (1564-1616) e ao compositor Caetano Veloso, prova que a língua é a nossa pátria. Sob a direção de Luciana Paes, Duvivier provoca reflexões com a mesma facilidade que sonoras gargalhadas ecoam de plateias encantadas com o seu talento. Para quem perdeu, entre 28 de janeiro e 1º de fevereiro, O Céu da Língua ocupa o imenso Espaço Unimed, na Barra Funda.

Novas Diretrizes em Tempos de Paz
Celebrizada por Dan Stulbach e Tony Ramos na década de 2000, a peça escrita por Bosco Brasil voltou aos palcos ainda melhor. Também diretor, Eric Lenate contracena com o ator Fernando Billi em uma deslumbrante arquitetura cênica que valoriza a essência da obra e abre caminhos para novas releituras. Em 1945, o imigrante polonês Clausewitz (Lenate) é interrogado por Segismundo (Billi) e precisa sensibilizar o funcionário da alfândega para ganhar o visto de entrada no Brasil. Os dois atores fazem a peça em um palco em permanente movimento – o que oferece ao público diferentes visões dos personagens.

A Máquina
Um outro clássico do começo dos anos 2000 que voltou à cena tomado por energia semelhante àquela do original. O mesmo autor e diretor João Falcão, que revelou os atores Gustavo Falcão, Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e Wagner Moura há 25 anos, conduz os integrantes do Coletivo Ocutá, Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto nas manobras da roda da vida em nome do amor. Os atores se revezam na pele de Antônio, o jovem do interior nordestino que deseja levar o mundo para a sua amada (papel de Agnes Brichta) e ressignificam o poético texto em um diálogo comovente e coerente a 2025.

Lady Tempestade
Um grande desempenho em uma carreira repleta de trabalhos marcantes. A atriz Andrea Beltrão comoveu plateias lotadas no Sesc Consolação e no Teatro Faap ao revelar a história da advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003), que defendeu presos políticos na década de 1970. Na dramaturgia de Silvia Gomez, dirigida por Yara de Novaes, a artista interpretou a personagem A., que lê os diários de Mércia e fica perplexa com os relatos sobre os desaparecidos. Basta puxar o sotaque nordestino para A. desaparecer e Mércia ganhar a cena. Poucos minutos depois, a personagem real volta a ceder espaço para a ficcional e, Andrea, soberana na técnica e na emoção, mostra ao público a brilhante atriz que é.

Senhora dos Afogados
A diretora Monique Gardenberg honrou a reponsabilidade de recriar a peça de Nelson Rodrigues (1912-1980) em nome da herança recebida de Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023). O primeiro espetáculo do Teatro Oficina depois da morte do seu mentor veio embebido de sua energia. Monique, porém, não dispensou a autoralidade e, com sua dramaturgia visual, tornou a tragédia familiar mais palatável ao público. A encenação funde o coro das tragédias gregas, projeções cinematográficas, referências à bailarina alemã Pina Bausch (1940-2009) e uma trilha sonora diversa. As atrizes Leona Cavalli, Lara Tremouroux e Regina Braga foram os destaques nas concorridas sessões no Sesc Pompeia e no Teatro Oficina.

A Médica
Sob a direção de Nelson Baskerville, a peça do inglês Robert Icke atualizou o clássico Professor Bernhardi, do austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), transformando o protagonista em uma mulher envolvida em polêmicas de religião, identidade e gênero em meio às irresponsabilidades da era digital. Com brilhantismo, Clara Carvalho interpretou a Dra. Ruth Wolff, que endureceu para consolidar uma carreira em um ambiente predominante masculino e viu que não bastou ser apenas muito competente. Sergio Mastropasqua, Chris Couto, Adriana Lessa e Anderson Müller, entre outros, se destacaram no elenco da produção que provou que uma sólida dramaturgia pode ser um poderoso canal para pautas urgentes.

Projeto Clarice
Permeado por questões da maternidade, o espetáculo dirigido por Cesar Ribeiro trouxe uma visão surpreendente da escritora Clarice Lispector (1920-1977) com a encenação dos contos Via Crucis (1974), Menino a Bico de Pena (1969), A Legião Estrangeira (1964), Amor (1960) e O Ovo e a Galinha (1964). Em grandes performances, as atrizes Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann protagonizaram histórias sobre o cotidiano de mulheres abaladas por epifanias capazes de fazê-las analisar criticamente a existência. Em fase de intensa atividade, o diretor realizou o seu melhor espetáculo ao dialogar com a escritora sem mitificá-la em uma encenação de extraordinário apuro estético.

Reparação
Com dramaturgia e direção de Carlos Canhameiro, o espetáculo foi uma grande surpresa ao recriar ficcionalmente as especulações em torno de um caso de estupro no interior paulista na década de 1980. Clientes e funcionários de um salão de beleza trocam informações sobre a violência enfrentada por uma moça rica e os desdobramentos do crime na vida dos envolvidos. Os atores Daniel Gonzalez e Luiz Bertazzo, as atrizes Fabia Mirassos, Marilene Grama e Nilcéia Vicente e o músico Yantó protagonizam 23 depoimentos que entrelaçam vozes reais e ficcionais em múltiplas versões sobre o episódio embalado por sucessos do grupo Roupa Nova, como Volta pra Mim, Dona e Coração Pirata.

O Mercador de Veneza
O clássico escrito por William Shakespeare (1564-1616) no fim do século XVI ganhou versão ambientada na década de 1990 sob a provocativa direção de Daniela Stirbulov. A peça mostra o embate entre o comerciante Antônio (interpretado por Cesar Baccan) e o agiota judeu Shylock (papel de Dan Stulbach). O primeiro levantou um empréstimo e ofereceu como garantia uma libra de sua própria carne. Os seus negócios despencaram, e o devedor não tem como quitar o saldo. A atual versão apresentou uma humanização de Shylock, comumente tratado de vilão, como um justiceiro que humilha aqueles que destratam as minorias sociais. Diante da ousadia, a peça gera opiniões controversas de fãs do dramaturgo, da comunidade judaica e do público LGBTQIAP+.

Pai Contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?
Em seus 18 anos, o Coletivo Negro atestou maturidade ao atualizar o conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis (1839-1908) em um diálogo entre a herança escravocrata e as desigualdades raciais contemporâneas. Com dramaturgia e direção de Jé Oliveira, o espetáculo gira em torno de Osvaldo (o ator Raphael Garcia), preto, que acaba de se tornar pai e trabalha como segurança em um supermercado. Um dia, ele é alertado pela gerência que uma mulher, preta e grávida (papel de Aysha Nascimento), estaria roubando mercadorias. Está estabelecida a luta pela sobrevivência entre um pai e uma mãe vulneráveis nos dias de hoje. O ator Flávio Rodrigues é o narrador, a representação de Machado no palco.

Menção Especial
Não me Entrego, Não!
Um ator acima de qualquer lista ou elogio, Othon Bastos brilhou em 2024 no Rio de Janeiro e chegou aos palcos paulistanos, nos teatros Raul Cortez e Sérgio Cardoso, neste ano. Histórias curiosas e emocionantes da sua vida pessoal e profissional permeiam o monólogo escrito e dirigido por Flávio Marinho. Em umas delas, Bastos recorda a carona que pegou com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) para começar as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1963, e, em outras passagens, volta a interpretar personagens marcantes, os das peças Um Grito Parado no Ar (1973) e O Jardim das Cerejeiras (1989). Aos 92 anos, Bastos surpreendente pelo vigor físico e conclama a todos a nunca se entregarem. Evoé!
