O melhor do teatro está aqui

2

Elisa Lucinda prega um cotidiano sem tédio em “Parem de Falar Mal da Rotina”

Sinopse

“Cada um de nós deve entender que as escolhas são nossas”, avisa atriz, em cartaz desde 2002 com o monólogo autoral que volta a SP para quatro sessões no Teatro D-Jaraguá, enquanto anuncia novo espetáculo para junho

Por Dirceu Alves Jr.

Atriz, poeta, cantora e escritora, Elisa Lucinda, de 67 anos, além disso tudo, é um ótimo papo. Ela atende o telefone e sai contando que, dia desses, encontrou o escritor e ambientalista Ailton Krenak no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Os comissários de voo anunciavam para breve o procedimento de embarque, mas ela foi convencida pelo amigo que dava tempo de tomar um café. Detalhe: em outro andar do aeroporto.

Os dois cruzaram dezenas, talvez centenas de pessoas, correram feito loucos, chegaram ao restaurante e, minutos depois, estavam novamente de prontidão em suas respectivas filas a tempo de pegar o avião. Meio perplexa, Lucinda perguntou ao colega antes de se despedir: “Afinal de contas, por que fizemos tudo isso?”. Com a serenidade característica, Krenak apenas respondeu: “É importante a gente perder um pouco do controle de vez em quando.”

Elisa Lucinda em Parem de Falar Mal da Rotina. Foto Daniel Barboza

Pode parecer que esta história seja só uma conversa jogada fora, um aquecimento para a entrevista, mas quando o papo é com Elisa Lucinda tudo, em alguns minutos, começa a fazer sentido. Desde 2002, ela protagoniza o monólogo Parem de Falar Mal da Rotina, com texto de sua autoria e direção de Geovana Pires, e desafia a plateia sobre a responsabilidade de cada um na hora de subverter as narrativas do dia a dia. Com carisma de sobra e raro domínio de palco, a artista conta histórias, improvisa em cima de assuntos da atualidade e interpreta poesias. 

O solo, que volta a São Paulo para apresentações da quinta (20) ao domingo (23) no Teatro D-Jaraguá, propõe a todos encarar o cotidiano como um cenário de renovação e jamais de repetição. “Cada novo dia é uma estreia e cabe a você vivê-lo do jeito que considerar melhor”, define. “A rotina não é só um lugar de tédio, ela tem importância para formar uma cartografia da nossa vida, mas cada um de nós deve entender que as escolhas são nossas.”

A protagonista de Parem de Falar Mal da Rotina sabe bem o que prega. Capixaba, Lucinda estudou jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo e, recém-formada, trabalhava na emissora afiliada da Rede Globo em Vitória. “Minha filha, você é bonita, escreve bem, vai dar uma ótima repórter de televisão”, disse o pai, orgulhoso. Lucinda cobriu todo o tipo de matérias, das ruas alagadas às disputadas políticas, passando por shows, como um da cantora Elba Ramalho. Logo depois de falar com Elba, começou a chorar e entendeu que, assim como a sua entrevistada, queria mesmo era pisar no palco

Elisa Lucinda em outra cena do solo Parem de Falar Mal da Rotina. Foto Daniel Barboza

Aos 28 anos, Elisa Lucinda pediu demissão, deixou temporariamente o filho de 4 anos aos cuidados do ex-marido e se mudou para o Rio de Janeiro atrás do sonho de estudar teatro e ser atriz. “Eu podia ter me acomodado naquela rotina que até era bem-sucedida, mas eu entendi que devia fazer a minha própria vida”, conta. As oportunidades apareceram aos poucos, Lucinda se firmou como uma profissional versátil e, quando entendeu que seu negócio era levar poesia ao palco, desenvolveu uma linguagem própria atraente para seguidores fiéis. “Eu descobri o tipo de teatro que gosto de fazer e, como sou uma pessoa voluntariosa o suficiente para saber que o prazer garante a qualidade do meu trabalho, saquei que precisaria me bancar.”

Lucinda não se importa quando falam que Parem de Falar Mal da Rotina flerta com a autoajuda. Pelo contrário, se o espetáculo fizer bem para os espectadores, ela fica até bem feliz – e exemplos não lhe faltam. Em 2004, a artista cumpriu uma extensa temporada em Barcelona e guardou o depoimento de uma pessoa como o resultado de uma ação que ultrapassa o campo artístico. “Essa mulher me disse que tinha trocado a dose diária do antidepressivo por uma ida ao teatro e já tinha assistido ao meu espetáculo dezenas de vezes”, lembra. “Então, se você lê um livro e fica bem, se pendurar um quadro na parede do quarto e se sentir feliz, toda arte é uma forma de autoajuda. Por que não o teatro?” 

Elisa Lucinda no monólogo Parem de Falar Mal da Rotina. Foto Jonathan Estrella

Em setembro, Parem de Falar Mal da Rotina completa 23 anos em cartaz, e tal longevidade não representa sinais de acomodação ou a simples manutenção de um projeto rentável. “Eu garanto que o espetáculo de quinta-feira nunca será igual ao de sábado e não quero dizer que atualizo o texto diariamente, as situações é que se renovam e influenciam a minha troca com o público”, declara.

Neste período, o Brasil mudou, as pessoas mudaram e Elisa Lucinda, claro, não parou no tempo. “Eu estreei com 44 anos, quem assistiu, sabe que começo o espetáculo pelada e podem ter certeza de que jamais vou deixar de fazer assim”, avisa. Um sucesso não tem explicação, mas a artista aposta na conexão do texto com temas que ganharam relevância cada vez maior e são abordados de um jeito casual, como se ela estivesse recebendo os amigos na sala de casa. “Eu falo de racismo, machismo, homofobia, transfobia, mas nunca tiro o sorriso do rosto e acho que isso ajuda as pessoas a refletirem sobre assuntos dos quais normalmente fogem.” 

Elisa Lucinda em cena de Parem de Falar Mal da Rotina, Foto Jonathan Estrella

Quando trazida à tona, a questão racial, vez por outra, causa algum embaraço e, ao perceber aquele silêncio tenso na plateia, a atriz trata de amenizar as provocações. “A prática escravocrata está tão enraizada que as pessoas não se dão conta daquilo que fazem até hoje todos os dias”, comenta. Os avanços das discussões e o aumento da representatividade são reconhecidos, mas Lucinda não romantiza a escalação de artistas pretos para personagens centrais nas novelas da Rede Globo. “É uma questão econômica, porque a Globo é uma empresa como outra qualquer e pegaria mal a pecha de preconceituosa”, alerta. 

Parem de Falar Mal da Rotina não será aposentado. Pelo contrário, Lucinda pretende mantê-lo em cartaz até ficar bem “velhinha” e continua firme em busca de narrativas diversificadas para o seu cotidiano. A artista anuncia para junho a estreia de um novo monólogo autoral, Cuidado com Ela, dirigido mais uma vez por Geovana Pires, que dará a largada pelo Rio de Janeiro. “Eu vou falar da questão da mulher e do homem diante da dissolução do patriarcado e quero viajar com os dois solos simultaneamente.” 

Serviço

Parem de Falar Mal da Rotina

Teatro D-Jaraguá. Rua Martins Fontes, 71, Hotel Nacional Inn Jaraguá

Quinta (20) e sábado (22), 20h. Domingo (23), 19h. R$ 150

[acf_release]
[acf_link_para_comprar]

Ficha Técnica

[acf_ficha_tecnica]

Serviço

[acf_servico]