Monólogo, dirigido por Fernando Philbert, conserva as falas do clássico personagem de William Shakespeare
Por Dirceu Alves Jr.
O carioca Rodrigo França, de 47 anos, é ator, dramaturgo, diretor, filósofo, professor, empreendedor e até ex-Big Brother Brasil. Diante de tantas facetas, por que também não poderia ser Hamlet, o atormentado príncipe criado por William Shakespeare há mais de quatro séculos em crise com as estruturas de poder ao seu redor?
Apoiado no balcão do extinto Seu França Restaurante & Gafiera, boteco do artista e seu irmão Fábio na Lapa do Rio de Janeiro, o diretor Fernando Philbert perguntou ao anfitrião: “Você já leu Hamlet?”. “Sim, algumas vezes”, respondeu França. “Quero saber se você leu pensando em fazer o personagem sob a sua ótica, a ótica de um homem preto que suporta o peso de uma vida esmagadora”, continuou Philbert. “Não, nunca”, completou, agora sim, o incisivo questionamento do interlocutor.
A provocação de Philbert não desceu redonda como as cervejas geladas que costumavam ser servidas no bar. França foi para casa com uma certa indignação na cabeça: “Por que atores e atrizes pretos não cogitam viver esses grandes personagens só porque são pretos?”. Incomodado, o artista pegou na estante a peça de Shakespeare e decidiu relê-la com os olhos de um possível intérprete. “É incrível como a subjetividade traduz de diferentes formas o que já lemos tantas vezes”, constatou. “O que bate sobre o personagem é a relação de poder e essa discussão é próxima a um preto que convive com uma realidade genocida de um Estado que mata.”
Assim, Rodrigo França, que é ator, dramaturgo, diretor, filósofo, professor, empreendedor e até ex-Big Brother Brasil, começou a emprestar corpo e, principalmente, voz a um dos mais célebres personagens de Shakespeare. O monólogo Eu Sou um Hamlet estreou em junho no Rio de Janeiro e dá a largada à temporada paulistana nesta quinta, dia 9, no Auditório do Sesc Pinheiros.
A dramaturgia é fiel às falas do protagonista de acordo com a tradução feita por Aderbal Freire-Filho (1941-2023), Barbara Harrington e Wagner Moura em 2008 com uma leve costura de Jonathan Raymundo, Philbert e França apoiada na trilha sonora criada por Dani Nega. “É só a voz de Hamlet em falas que não correlacionamos com os demais personagens, mas a história inteira está lá”, antecipa o ator. “Eu cito a Dinamarca e as pessoas entendem que falo do Brasil, assim como mostramos que Hamlet pode ser tanto um ator preto, como um oriental ou um travesti.”
França e Philbert se conheceram em 2010, durante o processo do musical Orfeu, dirigido por Freire-Filho, de quem Philbert era assistente. “Eu me lembro até hoje do teste do Rodrigo, um cara inteligente, simpático e com uma voz bonita para cantar”, conta o encenador de Eu Sou um Hamlet. Em 2016, Philbert dirigiu Lázaro Ramos e Taís Araújo na peça O Topo da Montanha e saiu deste trabalho com uma frase martelando na cabeça – “O Brasil é um país racista e não se fala abertamente sobre isto”.
Pouco depois, em uma livraria, comprou Contos Negreiros, coletânea de contos do escritor Marcelino Freire, sobre as desigualdades sociais no Brasil e, claro, o preconceito racial. Mesmo sendo um homem branco, entendeu que era a hora de cravar um posicionamento, nem que fosse como artista. “Encontrei a matéria-prima para a peça que poderia abrir falando que o Brasil é um país racista e chamei o Rodrigo para interpretar um sociólogo que costurava as cenas com dados em torno do assunto”, lembra Philbert.
Contos Negreiros do Brasil estreou em 2017 com França, Aline Borges, Marcelo Dias e Milton Filho no elenco e atravessou dois anos em cartaz. “Cada vez que encontrava o Rodrigo, vendo nele um lugar sempre mais forte como político, ativista, sociólogo, imaginava que deveríamos montar um novo Contos Negreiros e, claro, tinha o Hamlet na cabeça”, reforça Philbert.
Eu Sou um Hamlet explora as relações humanas e as condições da existência através dos questionamentos de um homem preto. O protagonista discute um mundo violento e segregado, o mito da democracia racial e o impacto da tragédia colonial em sua identidade. A famosa pergunta “ser ou não ser?”, proferida pelo personagem, ganha novas conotações – ainda que França tenha a noção de que precisa de certo cuidado ao lançar tal desafio. “Carrego uma responsabilidade e vou por um caminho sobre a possibilidade ou não de apontar esse confronto com a sociedade, mas é muito mais na relação de salientar que quem não faz é porque não tem condições e meios, ao contrário de mim como artista”, explica.
França elogia a montagem dirigida por Freire-Filho e protagonizada por Wagner Moura em 2008, mas lamenta que a maioria das versões do texto se esqueça da força das palavras e prefira privilegiar a beleza da encenação – o que acaba afastando a atenção do público. “Muitos espetáculos baseados em Shakespeare recorrem a interpretações tão empostadas que não mexem comigo”, confessa.
França sabe o que diz. Antes de ser Hamlet, ele participou de uma encenação de Ricardo III, nos tempos em que estudou teatro dirigido por Antônio Pedro (1940-2023), na década de 1990, e de Sonho de uma Noite de Verão, rebatizado de Sonho de uma Noite de São João, sob o comando de Paulo Betti e Anderson Cunha, em 2008. “A obra de Shakespeare é muito mais popular do que se costuma vender, mas, infelizmente, colocaram um muro entre ele e a sociedade, reforçando um elitismo desnecessário”, afirma. “Em seu tempo, suas peças eram como as novelas, agradavam a nobres e populares, e minha intenção é que tanto a tia da periferia como a madame do bairro rico saiam contempladas do teatro.”
Em uma das raras inserções em cima da dramaturgia, França questiona o personagem. Em uma das falas do original, Hamlet vê um ator com os olhos marejados depois de declamar um poema de Hécuba e comenta “por que ele chora assim? Imagina se tivesse a dor que tenho”. Neste momento, o Hamlet de França se posiciona como o homem preto que convive com as atrocidades do Brasil no século 21 e subverte a narrativa tradicional. “Imagina se Hamlet tivesse a dor que tenho, porque eu vi uma menina sendo baleada, eu vejo um jovem negro morto a cada três minutos.”
Cada vez mais próximo do espectador, França se coloca diante dos outros artistas e do mercado que, durante décadas, fez vistas grossos para atores e atrizes pretos e tem tido retornos da plateia que o surpreendem a cada noite. “Não é raro eu ouvir as pessoas comentarem que foi a primeira vez que compreenderam o Hamlet de Shakespeare”, diz o ator que, para 2025, promete, desta vez como dramaturgo, ao lado de Patrícia Andrade, o musical Djavan – Vidas para Contar, sobre o cantor e compositor alagoano. “É mais um grande artista que tem uma sofisticação com a palavra e isso não se traduz em um distanciamento ou em algo pernóstico.”
Serviço
Eu Sou um Hamlet
Auditório do Sesc Pinheiros. Rua Pais Leme, 195, Pinheiros.
Quinta a sábado, 20h. R$ 50. No sábado, 25 de janeiro, 18h.
Até 22 de fevereiro, estreia 9 de janeiro