Em “Prontuário 12.528”, que trata do autoritarismo estrutural do país, diretor dá sequência a uma trilogia sobre os regimes militares com foco em documentos que registram desde a colonização até a Comissão da Verdade
Por Dirceu Alves Jr.
Em 1978, a professora e ativista uruguaia Lilian Celiberti, hoje com 74 anos, foi sequestrada em Porto Alegre por policiais uruguaios e brasileiros com seus dois filhos, na época de 3 e 8 anos. Ela foi torturada na capital gaúcha e deportada para Montevidéu, ficando cinco anos presa, mas, antes, devido a uma grande repercussão na imprensa, as crianças foram encaminhadas aos avós. Esta foi uma das ações da Operação Condor, aliança secreta formada por países do Cone Sul para prender militantes políticos além das fronteiras.
Na parte final de Prontuário 12.528, espetáculo escrito e dirigido por Cesar Ribeiro, que estreia nesta sexta, 18, no Teatro do Núcleo Experimental, a atriz Clara Carvalho dá voz um relato de Lilian Celiberti. Entre as tantas palavras da ativista estão as de que uma democracia que admite torturadores e assassinos como parte da sociedade não merece esse nome e só é possível lidar com o presente e o futuro se o passado for analisado e compreendido.
“Fico tão tocada, tão emocionada quando dou esse texto porque, assim como eu, muitas pessoas relativamente informadas não conhecem a gravidade de tantas histórias acontecidas no Brasil”, afirma a intérprete. “Penso que, em 1978, muitos acreditavam no enfraquecimento da ditatura e levavam suas vidas como se nada mais estivesse acontecendo e não estou falando dos alienados, mas de gente legal, instruída, então precisamos trazer à tona estas questões para conhecer o país.”
Além de Clara, Prontuário 12.528 conta no elenco com os atores Helio Cicero e Pedro Conrado e a atriz Mariana Muniz. Os três últimos protagonizaram, ao lado de Rodrigo Bolzan, o espetáculo Dias e Noites de Amor e de Guerra, a primeira parte de uma trilogia construída por Ribeiro para a Cia. Mecenato Moderno, de Cicero e da produtora Silvia Marcondes Machado, sobre os regimes autoritários.
A montagem, lançada em março no Sesc 24 de Maio, abordava a repressão na América Latina com base nas vivências do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) entre as décadas de 1960 e 1980. “O máximo que falávamos sobre o Brasil era do assassinato do jornalista Vladimir Herzog e situações que envolviam o presidente chileno Salvador Allende”, lembra Ribeiro, que promete fechar a série com Infância Roubada, provavelmente em 2026, sobre os filhos de presos e perseguidos políticos.
Com Prontuário 12.528, o objetivo é mostrar o que aconteceu em solo brasileiro não apenas entre 1964 e 1985, os nossos anos de chumbo, mas desde o processo de colonização comandado pelos portugueses em 1500. A pesquisa começou concentrada nos depoimentos da Comissão Nacional da Verdade, instalada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2012. O título da peça pega emprestado o número que instituiu a lei para apurar responsabilidades de crimes ocorridos no período militar.
A dramaturgia ganhou amplitude quando Ribeiro encontrou textos sobre os marcos fundamentais do país. Situações de exploração, machismo, racismo, genocídio indígena, escravidão, homofobia e coerção a conversão ao cristianismo apareciam explicitadas em documentos que somavam até cinco séculos de existência. “Entendi que o bolsonarismo não é produto de uma época, mas de uma estrutura de país que vai e volta desde a colonização”, diz o diretor. “Basta olhar para trás para ver que o Brasil vive de golpe atrás de golpe e é assustador como certas ações são praticadas até hoje.”
Prontuário 12.528 apresenta dez cenas ambientadas em um hospital em ruínas, que simboliza o Brasil. “Os personagens estão dentro da realidade vivendo um pesadelo”, explica Ribeiro. Os quatro artistas interpretam pacientes que revisitam diferentes momentos históricos em uma estrutura fantasmagórica.
A peça abre com uma música do português Vicente Lusitano (1520-1561), considerado o primeiro compositor preto publicado, enquanto Helio Cicero, com uma máscara de formiga, rege uma suposta orquestra e a plateia ocupa seus lugares. Na sequência, Clara Carvalho, com um lampião, ilumina o espaço em uma referência ao mito grego de Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dar aos humanos, e traz os mortos para a narrativa.
Pedro Conrado interpreta um homem em uma cama hospitalar com um tudo de oxigênio, e Mariana Muniz representa uma mulher em uma mesa de necrópsia. Em outra cena, Cicero lê a carta do escrivão Pero Vaz de Caminha, dando suas impressões sobre a terra que seria batizada de Brasil. Trechos de Malleus Maleficarum, obra conhecida como O Martelo das Bruxas, uma espécie de guia da Inquisição, e o relato da execução a tiro de canhão do indígena Tibira, em 1614, considerado o primeiro crime por homofobia no país, são outros pilares da dramaturgia.
Toda essa carga histórica é levada à cena em forma de distopia e, como linguagem, remete a um quebra-cabeça inspirado nas histórias em quadrinhos, desenhos animados e jogos eletrônicas, que podem ser considerados as marcas do teatro de Ribeiro. É um realismo que foge quase o tempo inteiro do realismo e, neste caso, só se assume como tal nos momentos finais, quando entram em cena os depoimentos da Comissão Nacional da Verdade, entre eles o de Dilma Rousseff.
Encenador de personalidade, Ribeiro, de 52 anos, estreou em 1995 com a peça Subterrâneo, inspirada em texto de Dostoievski, que abriu espaço para a trilogia completada por Desimagem e Millenium, respectivamente sobre Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe. Sua carreira ganhou fôlego na última década com uma ousada versão de Esperando Godot, de Samuel Beckett, em 2016, e, na retomada da pandemia, em 2021, ele dirigiu O Arquiteto e o Imperador da Assíria, de Fernando Arrabal.
De volta a Beckett, no ano passado teve vez de Dias Felizes, que cumpriu temporada no Rio de Janeiro e voltou ao cartaz no mesmo Núcleo Experimental. São releituras diferentes e nada óbvias para textos tantas vezes montados que, sob o olhar de Ribeiro, ganham um reforço crítico. “Não vejo sentido em fazer teatro se não for para pensar a sociedade e dialogar com a gente mesmo e, depois, com o público”, declara. “No caso deste trabalho atual, o autoritarismo não foi passado a limpo e, mesmo que as mudanças através da cultura e da ideologia sejam lentas, se não fosse a arte, a barbárie teria ido muito mais longe.”
Serviço
Prontuário 12.528
Teatro do Núcleo Experimental. Rua Barra Funda, 637, Barra Funda
Sexta, sábado e segunda, 20h; domingo, 19h. R$ 40
Até 25 de novembro (estreia 18 de outubro)