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A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

“Sangue” leva ao palco a visão mercantilista dos herdeiros de grandes artistas

Sinopse

Kiko Marques escreveu e dirige a peça que conta no elenco com a atriz Carol Gonzalez e os atores Leopoldo Pacheco, Marat Descartes e Rogério Brito

Por Dirceu Alves Jr.

A atriz e produtora paulistana Carol Gonzalez, de 48 anos, morou entre 2003 e 2010 em Paris. Fez mestrado em teatro na Sorbonne, trabalhou um bocado e assistiu a, no mínimo, um espetáculo por semana, do mainstream à cena experimental. Conheceu de perto o que faz os franceses, ao lado dos ingleses, se considerarem os melhores do teatro no mundo. Será que ainda é assim? “Os franceses têm uma enorme tradição, mas encontram uma dificuldade imensa de passar o bastão”, diz Carol. “Eles chegaram a um limite e reconhecem isto, percebem que precisam inovar, ousar mais, só que, diante do passado tão forte, fica difícil romper com formas consagradas.

A longa temporada francesa transformou a bagagem de Carol e, ao contrário do que se poderia esperar, redobrou o seu senso crítico e a capacidade de enxergar o quanto a catequização europeia surtiu efeito no teatro brasileiro. Para ela, os nossos artistas precisam deixar de olhar tanto para os estrangeiros e chegou a hora de todos assumirem uma identidade própria. “Os nossos problemas políticos e as desigualdades sociais são, claro, muito tristes, mas oferecem questões enriquecedoras para novas dramaturgias”, observa. “Basta prestar atenção na força e na pluralidade das vozes que ecoam em cena desde que a presidenta Dilma Rousseff foi derrubada do poder e a democracia começou a ficar abalada.”

Cena da peça Sangue. Foto Heloisa Bortz

Escrito e dirigido por Kiko Marques, o espetáculo Sangue reúne temas contemporâneos por trás dos bastidores do processo de uma peça teatral – e muito do que foi visto e sentido em Paris por Carol, idealizadora do projeto, inspirou o autor. A montagem, que estreia nesta quinta, 8, no Centro Cultural Banco do Brasil, aborda o machismo, a violência contra a mulher, o racismo e a submissão artística mesmo em um meio que se considera mais sensível e encontra dificuldades para enxergar os pares como algozes. Depois de São Paulo, Sangue parte para o Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte. 

Na trama, a atriz Carin e o ator Cesar Santo (interpretados por Carol e Rogério Brito) estão mergulhados nos ensaios de uma peça de Aponti, um célebre dramaturgo francês falecido, e beiram resultados extraordinários. Irmão e herdeiro de Aponti, Victor (papel de Leopoldo Pacheco), porém, revoga a cessão dos direitos autorais e descarta qualquer negociação. Na verdade, ele foi convencido por Leon (representado por Marat Descartes), diretor francês e ex-namorado de Carin, de que a atriz teria plagiado uma ideia sua e condiciona a liberação da peça à inclusão dos dois na produção.

Sangue coloca em discussão o quanto é comum o herdeiro de um artista assumir o papel de comerciante sem ter o menor conhecimento do valor de uma obra de arte. “É uma ficção criada a partir de situações que verificamos ao entrar em contato com as famílias de autores falecidos que desejamos montar e perceber que a ganância e o desrespeito ultrapassam a noção de arte”, afirma Kiko Marques. “Por isso é fácil entender o motivo de grandes dramaturgos caírem no esquecimento e passarem décadas sem ter seus textos encenados.”

Marques ressalta que Sangue envereda por uma série de enfoques sobre a violência que vai além daquela que costuma ser praticada no dia a dia desvalorizado dos artistas.  “É como se a Carin sofresse um estupro poético porque ela é apaixonada por aquela obra e o Leon, ciente disso, quer destrui-la”, compara o autor. O olhar colonizador do europeu em relação ao latino-americano mostra a arrogância diante das visões criativas e a necessidade de autoafirmação de um pensamento antigo e inseguro em meio às inovações. “A peça defende um lugar de manutenção da pureza da arte e que a mentalidade mercantilista da família não tem nada a ver com o que artista imaginou na feitura do trabalho”, explica Marques.

Marat Descartes e Leopoldo Pacheco em cena da peça Sangue. Foto Heloisa Bortz

Em uma de suas falas, a personagem Carin defende a supremacia da liberdade de criação diante dos opositores. “Uma peça é uma porta por onde as pessoas passam e querer dominar o que será dito só vai gerar destruição”, diz Carol Gonzalez, em cena. A discussão é forte, agressiva, e Marques conta que o título, Sangue, apareceu em sua cabeça antes mesmo de que ele se sentasse ao computador para escrever a peça. “O meu objetivo é que as pessoas olhem a violência que pode existir dentro de algo que deveria ser poético e delicado”, conta. “Nós estamos falando sobre arte, teatro, não é sobre guerra ou tecnologia.”          

Carol Gonzalez salienta que a leitura contemporânea do autor e dramaturgo foi relevante para abordar a discriminação sofrida pelo artista brasileiro dentro do próprio país. “Para muita gente, aqui no Brasil, existe uma supremacia dos estrangeiros e é assim no cinema, na música, na arquitetura, na gastronomia”, declara. “Imagina, então, em relação aos artistas de teatro, que, além de enfrentar todas as dificuldades imagináveis, entram em cartaz e ainda ouvem que bons mesmos são os franceses.”   

Serviço

Sangue

Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Álvares Penteado, 112

Quinta e sexta, 19h; sábado e domingo, 17h. R$ 30

Até 15 de setembro. A partir de quinta (8).

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Ficha Técnica

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Serviço

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