Atriz e palhaça estreia a primeira temporada paulistana do monólogo cômico depois de acumular elogios e lotar teatros no Rio de Janeiro
Por Dirceu Alves Jr.
A atriz e palhaça carioca Rafaela Azevedo, de 31 anos, estreou o espetáculo King Kong Fran em novembro passado no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro. Para chegar ao palco, ela levantou 30 mil reais em um site de financiamento coletivo e completou o orçamento com outros 20 mil do próprio bolso. Jamais contou com patrocínio ou lei de incentivo e, depois de três semanas em cartaz, a produção estava paga e até um lucro dava sinal na conta bancária da artista.
King Kong Fran virou um sucesso. Emendou temporadas lotadas ao longo de 2023 nos teatros XP, Cesgranrio e Firjan Sesi e despertou curiosidade na cena carioca. O ator Marco Nanini e as atrizes Denise Stoklos e Marieta Severo são nomes de respeito que aplaudiram o trabalho. Em junho, Rafaela fez uma rápida passagem pelo Sesc Santana, em São Paulo, com três apresentações cheias no Festival Internacional Sesc de Circo que motivaram uma sessão extra. A partir da terça, dia 3, a peça engata a primeira temporada paulistana, no Teatro MorumbiShopping, que começa com boa parte das entradas vendidas e novos horários sendo anunciados.
Mas, afinal, o que tem de diferente Rafaela Azevedo e a sua Fran, a personagem do solo escrito e dirigido pela protagonista em parceria com o dramaturgo e encenador Pedro Brício? Elas são porta-vozes de um tema polêmico e relevante, levado ao palco de maneira divertida, inusitada e, dentro do possível, leve. A palhaça Fran critica o patriarcado e fala de representação de gênero, preconceito e violência contra a mulher em meio a referências como as da Monga, a Mulher Gorila e a do King Kong do cinema.
A personagem teve a popularidade testada em vídeos do Instagram durante a pandemia. “Eu criei uma estratégia de marketing nas redes sociais e, depois de 10 anos de carreira, colho o reconhecido por um projeto que acredito do início ao fim”, declara. Fran ganhou um fã-clube virtual e, nas conversas com as seguidoras, Rafaela colheu depoimentos de abusos que são relatados na peça junto de alguns vividos por ela mesma. “No final da peça, faço a simulação de um estupro e aquilo aconteceu comigo.”
O discurso, porém, é colocado em prática em um jogo de inversão com os espectadores masculinos, que, claro, consentirem na interação. “A Fran se comporta como um homem branco que pensa não ter nada demais aquela cantada sem graça, a passada de mão na bunda ou um assédio verbal e físico que pode chegar a um abuso sexual”, explica a atriz. “Tem gente que pode achar violenta a abordagem que faço no palco, mas a realidade de uma mulher é assim todos os dias desde que nasce.”
Pedro Brício acredita que Fran tem algo de Blanche Dubois, a protagonista da peça Um Bonde Chamado Desejo, criada pelo dramaturgo americano Tennessee Williams em 1947. “Ela se acha uma diva, age como se fosse uma estrela, mas qualquer um percebe que não é”, comenta. O coautor e codiretor descobriu Rafaela em uma performance da música Toxic, de Britney Spears, que ela cantava em ritmo de forró, toda descabelada, no show Canções para Matrimônio, dirigido por ela e o ator Pedroca Monteiro. “Rafaela tem uma presença que reúne carisma, suavidade e um despudor que a leva a transitar por qualquer assunto com amplitude cômica”, elogia.
O sucesso inicial no Instagram, no entanto, não pode abafar a longa estrada da artista, como salienta Brício. “Tem gente que imagina a Rafaela como uma youtuber, uma influencer, mas não é nada disso, ela é uma pesquisadora”, adverte. Rafaela começou a estudar palhaçaria em 2012 e se incomodou com um ambiente engessado e, segundo ela, estruturado no machismo verificado no circo. Ouviu que para ser um clown só precisava de um paletó e um chapéu. Para ela, não era tão simples assim.
Rafaela queria compor uma personagem com roupas curtas, decotadas, apaixonada pelo funk, que carregasse referências do subúrbio carioca de Honório Gurgel, onde nasceu e foi criada. “Os palhaços, em sua maioria, são homens e só acham graça no universo deles, por isso, há décadas, tem gente que acha graça naquelas cenas com as mesmas piadas de tapas ou tortas na cara”, critica. “Quando aparece no picadeiro uma figura feminina é para ser objetificada ou exposta ao risco de vida, como as trapezistas ou a mulher do atirador de facas.”
Como ninguém comprava suas ideias no circo, Rafaela foi estudar teatro na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), fez cursos com a atriz Vilma Melo e entendeu a técnica de criação de personagens e a complexidade que cada um pode ter. Em 2017, nasceu Fran, o seu alter ego para falar do que bem entendesse. “Os números de palhaço só existem se há um problema e o meu sempre foi com o meu gênero”, declara. “Eu não sei para onde levar a Fran porque é ela quem me leva e as questões que trago à cena podem mudar de acordo com o que vivo socialmente.”
King Kong Fran estreia em São Paulo com a aprovação de 20 mil espectadores em 70 sessões realizadas até agora. Além do Rio de Janeiro, o solo passou apenas por Belo Horizonte, Campinas e aquelas apresentações do Sesc Santana. Rafaela quer rodar o Sul e o Nordeste no ano que vem e, quem sabe, desenvolver produtos audiovisuais com a personagem. Há dois meses, ela é integrante oficial do elenco dos vídeos do Porta dos Fundos e, pelo menos por enquanto, não se deslumbra com a possibilidade de um contrato de televisão. “Quero ser dona do meu conteúdo e sei que não teria liberdade em uma emissora”, afirma. “Não é o dinheiro que me enche os olhos.”
Serviço
King Kong Fran
Teatro MorumbiShopping. Avenida Roque Petroni Junior, 1089, Morumbi.
Terça a quinta, 21h. R$ 80.
Até 16 de novembro.