Peça do grupo Teatro de Panela, “O Menino de Lugar Nenhum”, em cartaz no Sesc Pinheiros, usa a metáfora da falta de cores no planeta para falar de assuntos que por muito tempo ainda farão parte dos enredos de peças infantis
Por Dib Carneiro Neto (publicada em 27 de junho de 2025)
Uma pauta que ainda vai demorar muito para sair de cena no teatro para crianças é a aceitação das diferenças, o bullying e a intolerância com tudo o que é “diferente” da gente. Mas há de chegar o dia em que esse assunto não fará mais sentido, será anacrônico, porque crianças e adultos finalmente serão seres tolerantes, compreensivos, plurais e acolhedores. Enquanto esse tempo não chega, peças como O Menino de Lugar Nenhum, em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros, cumprem o seu papel relevante nesse mundo imperfeito e polarizado, que ainda avança e retrocede na mesma velocidade.
O espetáculo, da companhia paulistana Teatro de Panela, surgiu durante a pandemia e, de lá para cá, vem galgando espaços e temporadas cada vez mais frequentes, tendo em vista a plena aceitação conquistada pelo público. Com direção do convidado Ivan Parente, um dos nomes mais assíduos e talentosos nos musicais paulistanos, a peça estreou em abril de 2021, em temporada online, e já circulou por muitas unidades do Sesc e do Sesi em São Paulo, além de festivais, teatros e centros culturais em diversas cidades. Fez parte da Virada Cultural 2022 e foi apresentada em CEUs da capital. Recebeu oito prêmios no PROFEST 2021, incluindo o de melhor espetáculo infantil, pelo júri técnico e pelo voto popular. Não é pouco.

Mas o que há de diferente na abordagem desse assunto já tão encenado, a busca pelo respeito à diversidade? “O diferencial está na delicadeza de contar uma história a partir da metáfora”, explica Guto Moura, ator e um dos fundadores da companhia. “A gente não faz um discurso direto nem fechado. Contamos uma história por meio da estética, do simbolismo: um mundo onde tudo é preto e branco e de repente surge um menino colorido. Augusto poderia ser gay, gordo, pessoa com deficiência, autista, preto, branco… enfim, ele na nossa história é “colorido”, o que é diferente naquele lugar – e isso chega nas pessoas de acordo com suas vivências.”
Mais sensação do que conceito
Guto prossegue, entusiasmado com a pérola cênica que seu grupo tem nas mãos: “Nós construímos uma fábula visual e sensível acima de tudo. O tema da diversidade aparece naturalizado na trama, nos personagens que descobrem que não é ruim ser diferente – e isso, acredito, tira o peso da lição de moral. Nós não convertemos os personagens a gostarem do Augusto, ele próprio reconhece o quanto é bom ser quem ele é. O público não sai com um conceito aprendido, mas com uma sensação boa de pertencimento e aceitação. O melhor da vida é ser o que se é!”
No primeiro fim de semana do Sesc Pinheiros a reação da plateia foi magnética, segundo Guto Moura. Ele relembra: “A recepção foi linda e muito calorosa. A gente sentiu o público envolvido, atento do começo ao fim, se divertindo, interagindo e se emocionando com nossa história. Depois das sessões, fazemos fotos com o público e várias pessoas vieram conversar, elogiar, dizer o quão importante e delicada é a peça, adultos dizendo que se emocionaram e já saíram recomendando para os amigos. Foi uma estreia que encheu a gente de gratidão e deixou nosso coração quentinho.”

Esse tipo de reação tem sido frequente ao longo de todo esse tempo desde a estreia em 2021. Guto Moura conta como se dá essa aceitação tão imediata: “O que mais vejo se repetir, além do encantamento visual e plástico do espetáculo, é que o público, em especial as crianças, embarca muito no que o texto propõe. As pessoas se reconhecem nos personagens, se questionam, se envolvem de verdade. No final de semana passado, uma criança no fim do espetáculo perguntou para a mãe: ‘É isso que é bullying?’ Já aconteceu também de uma garotinha com deficiência física dizer para o personagem Augusto: ‘Olha! Eu também sou diferente, eu também sou colorida’.”
Dá gosto quando se percebe que o resultado é satisfatório graças ao esforço de tantos talentos envolvidos e que toda a persistente trajetória da companhia valeu a pena. Guto Moura deixa isso bem claro em seus depoimentos: “As crianças entendem tudo o que está acontecendo, mesmo as menores captam a mensagem, seja pela imagem, pelos bonecos, pela ausência de cor, por ver um menino colorido naquele mundo preto e branco e o que ele está sentindo, suas emoções. Já os adultos costumam se emocionar de forma mais profunda, talvez porque a peça toca num lugar de memória, às vezes da infância. Sempre alguém se sente de alguma forma deslocado, não aceito em algum lugar. Afinal, quantas vezes a gente não fez ou ainda faz algo para se sentir pertencente?”
A proposta de convivência com a direção
Ivan Parente, o diretor, concorda com isso em gênero, número e grau: “A gente faz muito isso com as nossas vidas: seguimos o que a sociedade designa e vamos nos ajustando às regras, esquecendo de seguir nosso coração”, ele diz. “Outro aspecto dessa abordagem é que a gente vê muito os pais sem saberem como conviver com as diferenças que existem dentro das próprias casas, com suas crianças. Cada criança é diferente. Ninguém ama igual, dá carinho igual, brinca igual. Claro que tem de ter regras, mas cada um pode ser da cor que quiser. Isso é muito bonito no espetáculo.”
“O que achei mais legal e desafiador no projeto”, declara Parente, “foi misturar atores com bonecos. O protagonista é um boneco, isso é incrível”. Ele nos conta também como foi o seu trabalho: “Minha direção é bastante apoiada no corpo, nos movimentos, nos gestos nas formas. Tudo bem marcadinho. Como são personagens de lugar nenhum, são muito retos ao se mover, muito chapados, feito cartoon mesmo. Como se tivessem uma camada só, unidimensional. E foi uma direção bem compartilhada, colaborativa, ainda que estivéssemos todos nos protegendo com as máscaras do isolamento pandêmico. Foi lindo. A companhia embarcou comigo em tudo. São uma gente muito dedicada. Eles estudam, leem, fazem aula de canto, se produzem, se dirigem, não deixam o espetáculo se acomodar e morrer.”
Diante de tanta abnegação e dedicação, que colham os melhores frutos sempre. Lembre-se: o nome é Teatro de Panela. Vida longa!
Serviço
O Menino de Lugar Nenhum
Sesc Pinheiros – Auditório. Rua Paes Leme, 195, Pinheiros
Domingos, 15h e 17h. R$ 40. Grátis para crianças até 12 anos
Até 27 de julho (estreou em 22 de junho)
