canal teatro mf logo

O melhor do teatro está aqui

Search

Um jeito criativo de falar com as crianças sobre desigualdade social

Sinopse

Em “O Sapateiro Ruço”, Cássio Brasil e Carlos Escher, diretor e intérprete, encaram a aventura incomum de adaptar um conto do russo Anton Tchekhov para o teatro infantil

Por Dib Carneiro Neto

Um sapateiro, negro e pobre, precisa cumprir às vésperas de Natal o compromisso de entregar um par de botas a um misterioso cliente. Exausto e inconformado, Antônio contesta a sua condição de ter de trabalhar enquanto os outros se divertem. Cansado, adormece e mergulha num sonho fantástico, em que o mundo se apresenta cheio de oportunidades, aventuras fartas e prazerosas. É neste sonho, entretanto, que uma criatura mágica, poderosa e desafiadora aparece e o faz se questionar sobre as diferenças sociais. 

Este é o enredo da peça infantil O Sapateiro Ruço, que estreia no Teatro Alfredo Mesquita, e faz temporada aos sábados e domingos, às 16 horas, de 13 a 28 de julho. Trata-se de um conto de ninguém menos do que o escritor e dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904), consagrado autor de peças para adultos como O Jardim das Cerejeiras, Tio Vânia, As Três irmãs e A Gaivota. Para ganhar o teatro de censura livre, o conto escolhido foi adaptado pela dupla Cássio Brasil e Carlos Escher. O primeiro também assina direção, cenografia e figurinos da montagem. O segundo, Escher, é o intérprete deste corajoso monólogo, que fala de temas como trabalho e desigualdade social – assuntos incomuns nos horários vespertinos. 

Carlos Escher no monólogo O Sapateiro Ruço. Foto Alicia Peres

Uma curiosidade é saber de onde vem o título da peça, já que o título do conto é O Sapateiro e a Força Maligna. Cássio responde: “Quando falamos com o primeiro produtor, de muitos que passaram por esse projeto, a primeira coisa que ele disse foi: ‘Pelo amor de Deus, não me venha com uma peça para criança com “maligno” no nome, a peça vai ser fracasso antes de ser montada!!!!’. Eu sempre achei o nome pouco sonoro, não achei que o Boris Schnaiderman foi feliz na tradução desse título e no original também não melhora muito… Aí um amigo, Valdy Lopes (diretor de arte), fez essa sugestão, gostamos e fomos nos acostumando com ela, mesmo porque o nosso sapateiro é uma personagem ‘defeituosa’, é um anti-herói. Não cumpre com o que se compromete, é invejoso, ganancioso… ele é bem imperfeito. Essa imperfeição, essa criatura “gasta”, estragada, se traduziu bem na palavra ruço.” 

Muita gente ainda torce o nariz para monólogos no teatro, achando que vai ser cansativo, maçante de ver. Imagine essa resistência quando se trata de teatro infantil. Pois Cássio Brasil comenta quais elementos de sua encenação garantirão o ritmo para que um só ator – Carlos Escher – “segure” a atenção das crianças. Vejam o que ele diz: “Nossa ideia originalmente era fazer uma peça autossuficiente, no sentido de que um único ator pudesse fazer todas as funções sozinho, uma espécie de contador de história, mas uma história encenada e com elementos de cenografia, figurino, adereços, luz e som – ainda que minimamente. Mas tudo isso executado por um ator, quase como um prestidigitador. Bem, não precisou muito para entendermos que essa ideia era uma completa insanidade!”

Traquitanas e gambiarras

Ele prossegue, contando que várias referências bastante inspiradoras no cinema e no teatro o ajudaram a criar um cenário que dinamizasse a encenação do conto de Tchekhov: “Eu fui me lembrando de alguns trabalhos que me encantaram,  como por exemplo a companhia francesa Royal de Luxe (‘A Verdadeira História Da França’, de 1992) com aquele livro imenso e espetacular em cena.  No Brasil, lembrei do ‘Você Vai Ver O Que Você Vai Ver’, que se passava num ônibus no saguão do CCSP, e do ‘Romeu e Julieta’, do Grupo Galpão, em que o palco era uma perua veraneio, ambos do diretor Gabriel Villela. E me lembrei ainda de filmes como ‘A Viagem do Capitão Tornado’, do Scola; e o mais recente ‘Balada de Buster Scruggs’, dos irmãos Coen. Essas traquitanas e gambiarras do teatro, principalmente do teatro medieval … essas invenções memoráveis… onde fica explícito nossa precariedade e nossa humanidade…essas carroças mambembes… com uma capacidade de encantar e enternecer.”

Carlos Escher no monólogo O Sapateiro Ruço. Foto Alicia Peres

Inspirado em tudo isso, o que foi então que ele criou? A resposta de Cássio Brasil: “Criei uma casa-caixa. Um cubo de 0,90mx0,90mx2m de altura – e coloquei em cada face uma porta (real e já usada), dividindo duas delas ao meio, alterando o modo de abri-las (para lembrar das portas das casas de antigamente).  De modo que a peça é um entra e sai sem fim. Tudo converge ou surge dessa caixa, uma caixa dentro de outra caixa, que é a caixa cênica do palco.”

Pantomimas e presepadas

Segundo o diretor, para o sucesso do monólogo, além da agilidade cenográfica, também será decisiva a trajetória experiente do ator Carlos Escher, que trabalhou muitos anos com a Companhia do Latão e tem bom treino de teatro narrativo e de teatro dialético. “Eu me aproveitei disso”, conta Cássio. “Carlos trabalhou também muitos anos como professor de artes numa escola de circo para crianças, e tem um grande domínio dessa capacidade de contar histórias. Nós nos conhecemos há quase 30 anos (ele tinha 13 quando estudamos com a Eugenia Thereza de Andrade) e na intimidade ele é capaz de fazer as maiores e mais absurdas pantomimas e presepadas, desde criar inventivas conversações com os seus cachorros (onde ele fala e responde com vozes e intenções diferentes) até pregar peças nos amigos, sempre nos fazendo contorcer de rir! No trabalho como ator, eu via pouco dessas habilidades, achava seus trabalhos sérios e até um tanto formais, por isso eu achei bom estimular e encorajá-lo a expor essas habilidades agora. E fomos inventando ações, movimentos, tudo sempre com muita agilidade. Tem sido um processo agradável. Eu voltei a me sentir como me sentia quando era criança ou quando comecei minha carreira. Um entusiasmo de tirar o fôlego e o sono, de tão prazeroso e mobilizador que foi o processo.” 

Carlos Escher no monólogo O Sapateiro Ruço. Foto Alicia Peres

“Eu não me considero um diretor, sabe?”, autoavalia-se Cássio Brasil. “Eu me deparo com minha completa ignorância e despreparo todos os dias. Mas eu vi e vejo muitos diretores trabalhando, e fui assimilando alguns conceitos meio que por osmose. Para mim, todo ser humano é capaz de fazer teatro. Eu comecei fazendo teatro amador, uma coisa de que não ouço mais falar, e acho isso um prejuízo social!” O trabalho com Carlos Escher, em ‘O Sapateiro Ruço’, foi quase sem definir o papel de diretor, pois foram construindo tudo juntos, numa parceria bem azeitada. “Muitas coisas que o público vai ver foi ele quem criou”, diz Cássio sobre Carlos. “Essa comunhão foi construída durante muito tempo.”

O que mais ‘rolou’ nos ensaios

Ainda assim, sempre há pedidos do diretor para seu elenco. O que Cássio mais pedia a Carlos Escher durante os ensaios? “Eu sempre dizia para ele não interromper uma informação no meio da frase, não colocar pausas para causar efeito”, responde Cássio, de pronto. “A informação numa frase precisa ser um flecha; tem um destino certo, preciso e veloz, não se deve frear as palavras em prol de uma ‘interpretação’, coisa que vejo a todo instante em todas as linguagens… Isso é uma traição à língua portuguesa. As vírgulas, os pontos-e-vírgulas, as reticências, elas têm uma lógica e função, não dá para ignorar isso, porque faz perder o sentido e causa ruído na comunicação.”

 Outra ‘orientação’, por assim dizer, que Cássio Brasil faz questão de transmitir: “As ações são mais poderosas do que as palavras, confie nelas, execute-as em cena como se sua vida dependesse delas, não as jogue fora, não se livre delas para dizer uma frase, porque a frase só terá sentido sustentada pela ação.” E mais uma coisa que é decisiva no teatro, segundo Cássio, é saber usar os adereços apropriadamente em cena. Ele explica: “Use os objetos com honestidade. Por exemplo: pegue o pente de verdade, penteie os cabelos de fato! Devolva-o ao seu lugar cênico, e antes de tudo encontre um lugar lógico e confortável onde colocá-lo no cenário. Objetos são apoios, confie neles mais do que na sua ânsia de falar! Os atores têm mania de achar que atuar é acima de tudo falar. Não consideram que as ações físicas são muito importantes e as desprezam, deixando o seu trabalho plano, previsível e profundamente enfadonho para quem vê!”

Quando a classe operária entra na trama

Agora Cássio Brasil vai nos contar como foi que o conto de Tchekhov foi parar nas mãos dele: “Eu tenho a mania de estimular meus amigos a produzirem seus projetos, fazerem suas produções e não só ficar esperando que os chamem para trabalhos. Quem nos contrata quer que façamos o conhecido e o que dá certo. Encorajo os meus amigos a partirem também para seus lados B. O erro é crucial para nosso enriquecimento, e a vida profissional só quer acertos! Então, algumas vezes ouço deles como resposta: ‘- Ah é? Por que você não me dirige, então?’ Foi assim com Mika Lins, em Memória do Subsolo, e agora com Carlos Escher foi a mesma coisa! Eu não tinha pensado em Tchekov pra crianças. Carlos é quem veio com essa história, eu comecei a estudar e vi que o conto ecoava no Fausto, do Goethe, nas peças de Ariano Suassuna, nos contos populares e a essa coisa toda que o Tchekhov trouxe para o teatro, com A Gaivota, por exemplo: a classe operária ter voz, ter uma importância na trama, não ser apenas para entrar, servir um copo d’água e sair de cena… Isso foi me encantando.

Carlos Escher no monólogo O Sapateiro Ruço. Foto Alicia Peres

Assim, aos poucos, Cássio Brasil viu características na fábula de Tchekhov que lhe deram certeza e confiança para transformá-la em peça de teatro e, ainda, com censura livre. “De fato o conto é uma espécie de fábula bem sofisticada”, comenta. “A personagem principal é cheia de contradição, tem um lado desprezível como todos nós! E a estrutura do conto é muito rica, os fogos de artifícios são usados no Natal e não no ano novo, como acontece aqui, e havia na época a missa da meia-noite, frequentada pela classe alta, porque os operários e servos iam só à missa matinal… Para ficar palatável para a criança, tiramos o fato de ele ser alcoólatra. No conto original, ele é casado e maltrata a esposa e a troca por outra, Tiramos também as citações religiosas. Mas, no cerne do conto, a personagem é astuta e muita inventiva,  o que a torna muito instigante para a criança.”

Temas que ainda são tabus para crianças

Com a montagem de O Sapateiro Ruço, Cássio Brasil acha que ficará patente o quanto a desigualdade social quase nunca é tema de peças para crianças. Ele avalia: “Essa questão é um tabu para o público infantil, o tema do trabalho também! É um projeto de alienação da criança, né? A criança tem o direito de saber que ela é um ser social, e que a vida é toda arquitetada pelas leis deste mundo, mas poucos se dispõe a isso, preferem fadas e fofices! Eu acho muito cinismo da nossa parte como adultos ignorar esse fato!”

Ele conta que, de certa forma, também está em cena e retratado no espetáculo: “Eu fui uma criança muito pobre, Carlos também. A diferença ê que eu fui criado no Interior. Cheguei a São Paulo já com vinte e poucos anos. Carlos é paulistano da Zona Sul, Capão Redondo, num tempo em que essa região era considerada um dos locais mais violentos do mundo! E nós saímos do nosso local de origem e fomos cada um ao seu modo nos aventurar no mundo da classe média, da burguesia, dos artistas… o que foi um processo muito doloroso e agressivo… E ninguém nos preparou para isso, ninguém nos alertou sobre a diferença de classes, caímos num mundo onde fomos aceitos porque éramos uma força de trabalho útil, barata e fácil de ser explorada. Então nós de algum modo estamos falando de nós mesmos, somos dois Antônios (o sapateiro) e nos seduzimos, vestimos as roupas de uma classe que não era a nossa de origem e sentimos na pele essa contradição.”

Serviço

O Sapateiro Ruço

Teatro Alfredo Mesquita. Av. Santos Dumont, 1770

Sábados e domingos, 16h. R$ 20

Até 28 de julho (estreia 13 de julho)

[acf_release]
[acf_link_para_comprar]

Ficha Técnica

[acf_ficha_tecnica]

Serviço

[acf_servico]